12 mar 13

Um direito socialista da concorrência?

Na semana passada teve início em Pequim a 12a Assembleia Popular Nacional (APN). É o momento de o Partido Comunista Chinês fazer um balanço de sua atuação e elaborar um plano legislativo para os próximos cinco anos. Na ocasião, o Premier Wen Jiabao reafirmou o objetivo do governo chinês de perseguir o crescimento econômico apostando mais no consumo interno do que nas exportações ou nos investimentos externos. Quer-se atingir a mesma taxa de crescimento do ano passado de 7.5% e manter a inflação abaixo de 3.5%. Wen Jiabao foi pragmático. Traçou metas que foram consideradas por especialistas chineses como sendo realistas.

China_UnicomO governo chinês tem promovido reformas legislativas graduais e significativas nos últimos anos para alcançar os objetivos de crescimento econômico. O legislador Wu Bangguo, no relatório anual de trabalho entregue aos deputados chineses, sublinhou que a reforma de certas leis está no centro das preocupações do governo. Para este ano, por exemplo, espera-se que a APN delibere sobre os projetos de revisão da Lei do Orçamento, da Lei de Marcas, da Lei de Proteção Ambiental, e supervisione a implementação da Lei de Educação Obrigatória e a Lei de Energias Renováveis.

O desafio é reformar o sistema jurídico sem descaracterizar o seu perfil “socialista com características chinesas”. Foi o que disse Wu. Mas quais as características principais que distinguem o direito chinês dos demais direitos considerados capitalistas? É possível preservar o caráter socialista do sistema jurídico chinês diante do avanço da China em um mundo regido por regras e instituições internacionais que reforçam o modelo econômico capitalista? Ou será que o perfil “socialista com características chinesas” não ultrapassará as fronteiras da China e será preservado das influências jurídicas oriundas dos sistemas capitalistas?

Para Wu Bangguo, a China nunca copiou os sistemas políticos Ocidentais. “Nós entendemos completamente a diferença essencial entre o sistema chinês de assembleias populares e sistemas de países capitalistas ocidentais de poder do Estado”, disse Wu para quem o sistema jurídico chinês sempre “resistiu à influência de todos os tipos de pensamentos e teorias errôneos e manteve uma posição firme e clara sobre as principais questões de princípio“. A ascensão da China no cenário internacional traz de volta – mas em um contexto diferente daquele da Guerra Fria – o debate entre as concepções de direito socialista e capitalista. Mas qual a fronteira entre um e outro? Esta questão geralmente nos remete à relação, muitas vezes sujeita à manipulações ideológicas diversas, entre Estado versus mercado.

Em entrevista concedida ao canal CCTV News, o professor de economia da Universidade Tsinghua e membro do Comitê Nacional da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês (CCPPC), Chong-en Bai, expressou a opinião de que o governo chinês deveria restringir-se aos papeis que são considerados de sua responsabilidade – tal como a proteção ambiental – e melhor definir o papel do mercado que tem assumido um lugar cada vez mais importante na sociedade chinesa. Nesta linha de raciocínio, ele destacou também a importância de se estabelecer igualdade de competição entre as empresas estatais (SOEs – state-owned enterprises) e as não estatais. Eis um assunto que pode nos levar ao coração do debate sobre os perfis dos sistemas jurídicos.

A Comissão de Reforma e Desenvolvimento Nacional (CRDN), uma das mais poderosas agências responsáveis pela implementação da nova lei antitruste chinesa, em vigor desde 2008, impôs uma multa de RMB 353 milhões (US$ 56.7 milhões) contra um cartel de seis proeminentes companhias globais fabricantes de LCD. Estas empresas teriam inflado artificialmente os preços das telas de LCD no período de 2001 a 2006. Além da multa ser a primeira ação contra um cartel internacional, ela é também a maior multa já imposta pelo governo chinês por violação das regras antitruste. Esta ação da CRDN parece indicar que o governo chinês está com disposição para aplicar a lei antimonopólio contra as corporações multinacionais que adotarem medidas anticoncorrenciais. Esta disposição alcançará as empresas estatais?

Uma investigação iniciada em novembro de 2011 contra a China Telecom e a China Unicom ainda não chegou ao fim. Ambas as empresas são estatais e estão sendo investigadas pela CRDN por aplicarem preços discriminatórios no acesso às suas redes de banda larga. Elas cobram de seus competidores diretos um valor maior do que aquele estabelecido para os não-competidores, restringindo outras operadoras de entrar no mercado.

Li Qing, diretor da Secretaria de Supervisão de Preço, Inspeção e Antimonopólio da CRDN, declarou que a “China Telecom e China Unicom têm, juntas, mais do que dois terços de participação de mercado”. E sustentou ainda que a “China Telecom e China Unicom têm usado de sua posição dominante no mercado para cobrar preços mais elevados de seus concorrentes … enquanto que para os não-concorrentes eles estão cobrando alguns preços preferenciais”. Esta conduta é definida como discriminação de preço nos termos do artigo 17(6) da lei antimonopólio chinesa. Até então, acreditava-se que nenhuma autoridade antitruste sujeitaria as empresas estatais à investigação por serem elas vinculadas ao governo.

O direito da concorrência é um antídoto contra a concentração de poder econômico nas mãos de poucas empresas, impedindo-as de ficarem mais poderosas que o próprio Estado e de atuarem contra os interesses da sociedade. Se assumirmos ser este o objetivo de uma lei antimonopólio, combater as condutas anticompetitivas faz todo o sentido em um sistema jurídico socialista. O problema é saber como gerir tal lei quando o mercado é dominado por empresas vinculadas ao Estado. O governo chinês terá que fazer escolhas. E fará isto sem pressa. As reformas legislativas estão sendo feitas de maneira gradual e tendo em conta não só a preservação da identidade do sistema jurídico chinês, mas sobretudo o fortalecimento da legitimidade do Estado, do governo e do partido. O mercado terá que ter paciência – uma característica que terá que aprender com os chineses.

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2 Comentários

  • Emilio Carepa says:

    Gostei muito do artigo e achei-o bastante equilibrado e principalmente isento de viés ideológico, como é de bom tom em um artigo científico.

    • Obrigado, Emilio, por sua leitura e opinião. Claro que um blog não tem necessariamente o mesmo rigor de um artigo científico. Mas procuro publicar posts que informem o leitor e, sempre que considerar oportuno, procurarei expressar a minha opinião a fim de dar mais “tempero” ao texto. Abraço. Evandro Menezes de Carvalho.

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