14 maio 13

Rule of law e o cotidiano chinês

SAM_2996_okO que o direito chinês tem em comum com Shanghai e outros grandes centros urbanos da China? É um grande canteiro de obras. E não se trata de uma obra aqui e outra acolá. São inúmeras as leis promulgadas para acompanhar as reformas econômicas que se aceleraram nas últimas duas décadas e que visam transformar a China em um Estado socialista de mercado baseado no rule of law.

As reformas legislativas em curso preparam a China para o futuro diante das responsabilidades que terá como um dos países líderes do mundo. A China sabe que, para ser competitiva, precisa ter um direito à altura do desafio. Em pouco mais de uma década aprovou importantes leis na área do meio ambiente, da concorrência, do mercado financeiro, das empresas e da propriedade intelectual. O estudo comparado encontra terreno fértil aqui na China. Os chineses estudam, copiam e aprimoram o que encontram de melhor no mercado mundial de normas jurídicas, adaptando-as à sua realidade e tendo em conta os seus interesses.

A China de hoje é muito diferente daquela deixada por Mao Zedong. Na China maoísta o direito era uma ferramenta a serviço do “Partido-estado”. A ideia de rule of law, na qual até mesmo o governo deveria agir de acordo com a lei, tinha suas limitações. Nesta época, a carreira jurídica não tinha muito apelo. Mais de trinta anos se passaram e a China assiste, hoje, a um protagonismo espetacular do direito e das carreiras jurídicas na vida do país. Há inúmeras faculdades de direito que formam dezenas de milhares de bacharéis todos os anos. No final de 2011, havia 573.223 profissionais do direito na China, incluindo juízes, promotores, advogados e notários – a maioria deles concentrados em Beijing, Shanghai Guangdong, Shandong e Jiangsu. É pouco se considerarmos o tamanho da população chinesa. Mas é um número expressivo se levarmos em conta o período imediatamente posterior à morte de Mao Zedong, em 1976, quando o sistema jurídico estava desestruturado (basta mencionar que havia sido extinto o Ministério da Justiça e a Procuradoria). Hoje, o sistema de justiça se profissionalizou, o Ministério da Justiça e a Procuradoria foram restabelecidos. Cada vez mais os cidadãos chineses acionam a Justiça para a defesa de seus direitos. Segundo um relatório da Universidade Renmin, nos últimos 30 anos o número de juízes na China triplicou para 195.000 e aumentou em 13 vezes o número de processos anualmente submetidos a cada um dos magistrados. Pode-se dizer que a era de ouro do direito está apenas começando na China. O fato inédito de os dois principais líderes chineses terem formação jurídica não é uma mera coincidência.

Contudo, como em todo canteiro de obras, há sempre pedras no caminho. E a principal delas é garantir que estas novas leis sejam efetivamente observadas e aplicadas. A minha observação do cotidiano em Shanghai leva-me a concluir que a consolidação de uma cultura baseada no respeito ao rule of law ainda pode ter um longo caminho pela frente. Cito três exemplos.

Duas semanas após chegar em Shanghai aluguei um apartamento na Rua Daxue (Rua da Universidade) próxima da Shanghai University of Finance and Economics (SHUFE). Na negociação do contrato de aluguel com a proprietária do imóvel e com o corretor que sabia falar um inglês razoável, perguntei qual seria a multa a pagar caso eu decidisse entregar o apartamento antes do prazo convencionado. O contrato nada estipulava a respeito. Ao invés de inserir uma nova cláusula, preferiram renegociar meu prazo de permanência no imóvel. Ao final, acordamos que eu alugaria o imóvel por um ano – e não mais por um ano e meio como eu pretendia inicialmente – e que eu teria a preferência caso decidisse renovar o contrato por mais seis meses, mantendo-se o mesmo valor do aluguel. Pedi que acrescentássemos este compromisso no contrato. A resposta do corretor foi desconcertante: “não precisa, eu lhe garanto”. Pedi recibo logo que efetuei o pagamento dos primeiros três meses de aluguel. Num folha de papel em branco e em duas linhas (em mandarim, claro) o corretor improvisou o documento. Saí da imobiliária com a sensação de que a minha insistência nos detalhes formais causou certo aborrecimento e que a ideia generalizada de que os chineses não dão muita bola para os contratos parece ter algum fundamento.

Entro na estação de metrô. Há dois funcionários fazendo a inspeção das bolsas, mochilas etc. Esta medida de segurança foi implementada por ocasião da Shanghai 2010 World Expo para prevenir possíveis ameaças e atos terroristas, e dura até hoje. Contudo, quase ninguém leva a sério. Muitas pessoas simplesmente ignoram os funcionários que nada fazem diante desta indiferença generalizada. Eu, em todo caso, prefiro obedecer para evitar aborrecimentos.

Ao sair do metrô, o trânsito de Shanghai. Um caso à parte. O sinal verde para os pedestres não é necessariamente respeitado pelos motoristas. Alguém me explicou que os carros têm sempre a preferência quando dobram à direita. Mas muitas vezes eles ultrapassam a faixa para seguir em frente! Notei, também, que nem mesmo os pedestres respeitam a sinalização quando cruzam a avenida. Foi com o intuito de promover a conscientização das pessoas sobre a segurança no trânsito que a prefeitura de Beijing aprovou uma nova lei que permite a polícia multar aqueles que atravessam a rua desobedecendo a sinalização. Os pedestres que cruzarem o sinal vermelho receberão uma multa de 10 yuan (USD 1,60) e os ciclistas, uma multa de 20 yuan ( http://bit.ly/15YIn9E ). Resta saber se esta medida será suficiente. Afinal, os motoristas também precisam respeitar os pedestres… e, inclusive, as autoridades. A polícia de trânsito de Shanghai adotou uma nova punição para os pedestres e condutores de veículos não motorizados que infringem as regras de trânsito e não querem pagar a multa: ler publicamente em voz alta as notícias de jornal sobre acidentes no trânsito. Recentemente foi notícia mundo afora a venda de camisetas aqui na China que simulam o cinto de segurança com o objetivo de enganar a polícia e evitar multas (http://glo.bo/10Yi3cJ).

Com um artigo intitulado “Enforcement more important than law” (http://bit.ly/12xoZKH), o vice-editor do China Daily, Chen Weihua, chama a atenção para a violação das regras jurídicas no cotidiano dos moradores de Shanghai e outras grandes cidades da China. Ele inclui outro tipo de violação ao direito que é o desrespeito aos sinais de “não fumar”. E faz uma advertência: “a China promulgou leis suficientes nas últimas três décadas, inclusive para lidar com as violações acima. No entanto, poucos parecem saber quem deve aplicá-las e como. Leis não aplicadas são piores do que não ter nenhuma, porque elas transmitem o sinal errado de que as pessoas não precisam levá-las a sério.” Para Wang Qingbin, professor associado da China University of Political Science and Law, “a implementação da lei [que proíbe fumar em locais públicos fechados] não é satisfatória, principalmente porque há uma falta de fiscalização e conscientização da lei”. Além disso, sustenta o ex-vice diretor da China Center for Disease Control, “os órgãos responsáveis ​​pela aplicação da lei não acham que o tabagismo é um grande problema”.(1) As regras de direito parecem não resistir à força do hábito e dos costumes. As regras sociais coletivamente estabelecidas pela dinâmica social da vida cotidiana ainda têm um peso considerável no dia a dia dos chineses.

O desafio da China é, portanto, introduzir no cotidiano o respeito ao rule of law. O melhor meio para promover o cumprimento das regras jurídicas é fazer com que elas sejam respeitadas “desde cima”. Esta mudança de perspectiva na relação do Estado com o direito contrastaria com a China de Mao Zedong. Se bem projetado e com boas fundações, o edifício jurídico chinês será equiparável em complexidade e grandiosidade aos arranha-céus de Shanghai. Se mal calculado e aplicado, pode se equiparar àquelas suntuosas cidades-fantasmas chinesas que foram construídas sem haver demanda.

(1) China Daily. “Cities struggling to enforce bans on smoking in public”. 5/12/13, pig. 4.

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