03 set 13

Partido, Estado e Corrupção na China

O julgamento de Bo Xilai, 64 anos, foi um evento jurídico e midiático na China neste final de verão. Os jornais publicavam diariamente relatos do julgamento e o microblog oficial do Tribunal divulgava on time as transcrições do processo. Um fato inédito. Trata-se de um dos mais importantes casos jurídicos desde 1978. Bo Xilai não é um personagem qualquer da cena política chinesa. Ele foi Chefe do Partido em Chongqing e membro do poderoso Comitê Central do Bureau Político do Partido Comunista. Agora é uma carta fora do baralho.

Bo é acusado de suborno, peculato e abuso de poder numa trama que envolve, segundo a imprensa, 25 milhões de yuan (USD 4.1 milhões). A esposa dele, Bogu Kailai, não é mera coadjuvante na história. Além de ter participado de esquemas envolvendo desvio de dinheiro, Bogu Kailai foi condenada à morte por ter assassinado o britânico Neil Heywood em novembro de 2011. A execução da sentença está, no momento, suspensa. Bo Xilai alega que ela teria escondido dele todos estes fatos e o traído com Wang Lijun, o ex-vice-prefeito e chefe de polícia de Chongqing. Wang, 53 anos, também foi condenado em setembro de 2012 por abuso de poder, corrupção passiva e deserção por ter tentado escapar da Justiça chinesa ao fugir para o Consulado Geral dos EUA, em Chengdu. Os ingredientes desta trama são um prato cheio para um roteiro policial que tem seu grand finale no tribunal. Na história real, é o Tribunal Popular Intermediário de Jinan, na província de Shandong.

Tive a oportunidade de conhecer o Tribunal Intermediário de Shanghai. A sala de audiência para os julgamentos de grande apelo popular é imensa e mais parece um auditório de teatro. Há, ainda, salas de audiência menores. Aquela reservada para os casos criminais tem as paredes e seus móveis em tons escuros. Já nas salas reservadas para os casos cíveis predomina um tom mais claro. O funcionário do Tribunal que nos acompanhava chamou-nos a atenção para este importante detalhe. É proposital. O tom da cor segue a gravidade da suposta ilegalidade cometida pelo réu. Feng shui até no Tribunal. No caso Bo Xilai, a coisa está muito preta. Em duas semanas deverá ser divulgada a decisão final.

A luta contra a corrupção está no topo da agenda política do atual governo chinês. E o caso Bo Xilai vem a calhar. O chefe do Partido Comunista da China, Xi Jinping, prometeu “colocar o poder em uma gaiola de regulamentos para combater a corrupção praticada por “tigres” e “moscas” – fazendo referência aos funcionários de alto e baixo escalão. A percepção generalizada é de que a corrupção é endêmica e decorrente da deficiência do sistema de poder. O consenso dentro do Bureau Político, segundo declaração publicada no dia 27 de agosto passado, é que deve haver uma reforma contínua das instituições chinesas e uma supervisão mais eficiente sobre o exercício do Poder.

Casos de corrupção abundam na China e frequentam quase diariamente as páginas dos jornais daqui. Recentemente, quatro executivos seniors da maior companhia estatal de petróleo da China, a China National Petroleum Corporation (CNPC), foram dispensados pelo Comitê do Partido tanto dos seus postos administrativos quanto dos postos que ocupavam no Partido. Eles estão sendo investigados por suspeita de “graves violações de disciplina” – um termo que geralmente se refere a casos de corrupção segundo uma declaração da Comissão Central de Inspeção Disciplinar do Partido Comunista.

O fato é que na China o combate à corrupção não está somente nas mãos dos órgãos do Estado, mas também (e sobretudo) do Partido. De um lado, tem-se a Procuradoria; e, de outro, as autoridades disciplinares do Partido Comunista Chinês. Duas cabeças de um mesmo corpo; duas forças importantes na luta contra a corrupção. Cada um com o seu sistema de normas e sua competência. Contudo, o Partido tem mais investigadores do que a Procuradoria. Além disso, a atuação da Comissão Disciplinar do Partido precede a da Procuradoria que avaliará as provas apresentadas e, se considerar pertinente, apresentará uma acusação perante o tribunal. Na prática, se o Partido considerar que o investigado não infringiu normas disciplinares, dificilmente o caso será levado ao conhecimento da Procuradoria. Por outro lado, se o Partido entender que o investigado infringiu normas disciplinares, o destino deste está praticamente selado quando  o seu caso for transferido para os órgãos do Estado. É aqui onde reside o nó górdio e o desafio para a reforma do sistema de justiça chinês.

O 18 º Congresso Nacional do Partido, realizado no final de 2012, salientou que a China vai dar “mais valor ao importante papel que o Estado de direito [rule of law] terá na governança nacional e gestão social, para manter a unidade, a dignidade e a autoridade do seu sistema jurídico”. Mas a ideia de rule of law na China ganha contornos diferentes se comparada à noção consagrada no Ocidente. Na China, pelo menos no que diz respeito ao combate à corrupção, o sistema jurídico abrange as normas disciplinares do Partido e as normas do Estado. O objetivo de ambos é o mesmo: eliminar o rule by man em que a decisão de punir alguém é feita segundo o desejo da autoridade.

Mas será que a população chinesa tem esta percepção do sistema jurídico chinês? Pode o rule of law conviver com a estrutura bicéfala onde as normas disciplinares do Partido antecede às normas do Estado? O fato da Procuradoria e o Judiciário não terem poderes suficientes para investigar e julgar uma autoridade que não tenha sido previamente investigada e afastada de suas funções pelo Partido não evidenciaria uma forma seletiva de implementação do direito e, portanto, a prevalência do rule of man sobre o rule of law? Ou deveríamos compreender que a noção de rule of law é mais ampla de modo a poder abranger as normas do Estado e do Partido sob a condição de que elas não façam distinção entre os diferentes lawbreakers? Não seria esta a expressão máxima do direito “com características chinesas”?

O Bureau Político do Comitê Central do Partido Comunista aprovou no mês de agosto passado um plano anti-corrupção para o período de 2013 a 2017. Acabar com a corrupção é uma ilusão, uma promessa que se sabe nunca será concluída. Como afirmou Wang Ruolei, em artigo publicado no Study Times, “o combate à corrupção tem sido, provavelmente, uma tarefa de todas as dinastias desde que o primeiro Estado centralizado foi fundado na China a mais de 2.000 anos atrás”.(1) Se se conseguisse acabar com a corrupção, aí sim poderíamos falar mais apropriadamente no “Fim da História”. Como esta é uma tarefa sem fim, o Partido Comunista Chinês corre o risco de não encontrar um final feliz.

P.S.: Quando visitei o Tribunal Intermediário de Shanghai, deparei-me com a escultura de uma criatura mitológica chinesa cuja foto ilustro este post: o qílín (em chinês: 麒麟). Também chamado de “unicórnio chinês”, o Qílín simboliza a força no sistema judicial chinês. Diz-se desta criatura que ela só aparece em regiões governadas por líderes benevolentes e sábios, e que fala facilmente o idioma humano, podendo saber quando alguém está dizendo a verdade ou está mentindo. Seria um reforço importante no esforço de se implementar a cultura do rule of law na China.

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Foto 1: sala de audiência para os casos cíveis.

Foto 2: sala de audiência para os casos criminais.

Foto 3: grande sala de audiência para os julgamentos de grande apelo popular, político e midiático.

(1) China Daily, página 8, 27 de agosto de 2013.

Atualização do post: No dia 22 de setembro de 2013 (domingo), Bo Xilai é condenado à prisão perpétua. O Tribunal Popular Intermediário na cidade de Jinan também privou Bo de seus direitos políticos e confiscou todos os seus bens pessoais. (http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/efe/2013/09/22/bo-xilai-e-condenado-a-prisao-perpetua.htm)

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2 Comentários

  • aurelio josefino says:

    prezado leitores, ja gue o sonho d. china e americanos se cruzarao, em relaçao ao dominio, agui, china com 300 instituto confuçio, a onu ajudando a governar s.paulo, so assim talvez ajutiça brasileira, va alem do umporçendo das puniçaoes dos crimes, d. colarinho. os politicos e outras autoridades.

  • Danúbia Guerreiro says:

    Os políticos brasileiros não acreditavam que iriam presos, mas no caso do mensalão, mesmo contando com a benevolência da lei brasileira, a maioria já está na prisão.

    O pior é ver as multas serem pagas “via internet” pelo “povo”!!!!!!

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