08 dez 13

Jango na China de ontem e no Brasil de hoje

Jango.China

Sexta-feira passada (06/12/13), trinta e sete anos depois de sua morte, o ex-Presidente João Goulart foi enterrado com honras de Chefe de Estado no município de São Borja, no Rio Grande do Sul, local onde nasceu. Seu corpo havia sido exumado no dia 13 de novembro passado a pedido da Comissão Nacional da Verdade que investiga as causas da morte dele. Quer-se esclarecer se o ex-Presidente morreu de um ataque cardíaco (tal como oficialmente registrado) ou se teria sido assassinado pela ditadura militar na chamada Operação Condor. Este importante fato – que mereceu pouca atenção da grande mídia brasileira – fez-me relembrar um importante momento da história política de nosso país.

Agosto de 1961. João Goulart, então vice-presidente do Brasil, encontrava-se na China na primeira missão diplomática oficial de um representante brasileiro a este país. Diante das autoridades chinesas, proferiu o seguinte discurso:

“Meus amigos chineses, nestes poucos dias de convívio com o povo chinês e com seus dirigentes pude ver que esta não é a velha China cheia de lendas e superstições que os povos ocidentais encaravam com um misto de vago temor e uma admiração reverencial pelo desconhecido. O vosso país dá-me a sensação de uma renovada juventude dentro de si mesmo. Ao primeiro contato convosco diante da recepção calorosa que vós proporcionastes, senti-me como se estivesse hospedado na casa de um velho e bom amigo. Viva a amizade cada vez mais estreita entre a China popular e os Estados Unidos do Brasil! Viva a amizade dos povos asiáticos, africanos e latino-americanos!” (http://www.youtube.com/watch?v=KvEloQK_EVI).

Quando o gaúcho de São Borja ainda encontrava-se em solo chinês, o então Presidente Jânio Quadros renuncia ao cargo. Consequência: instabilidade política e balbúrdia na caserna. Um plano de golpe é rapidamente gestado pelos ministros militares para impedir que João Goulart, o herdeiro de Vargas, assumisse a Presidência ao retornar da China. Em um período de Guerra Fria, João Goulart era visto pelos militares como uma ameaça ao país pelo fato de ser trabalhista e por ter vínculos políticos com o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e o Partido Socialista Brasileiro (PSB). Estar na China na ocasião da renúncia de Jânio só contribuía para reforçar esta imagem.

Apesar de conseguir assumir a Presidência com o apoio dos que defendiam o respeito à Constituição, João Goulart não sai do episódio totalmente vencedor. No delicado jogo de equilíbrio das forças políticas, o combinado foi uma solução “à brasileira”: instaurou-se um regime parlamentarista de ocasião com o intuito de esvaziar o poder do novo Chefe de Estado. As forças golpistas não lograram êxito naquele ano de 1961, mas também não demoraram para levar adiante o plano antidemocrático. Menos de três anos depois, no fatídico 1o de abril de 1964, a ditadura militar é instaurada no Brasil sob o comando do general Castelo Branco. No dia seguinte, o Congresso Nacional declara a vacância de João Goulart no cargo de presidente. Jango, como era conhecido, é deposto. No dia 10 do mesmo mês, o Ato Institucional Número Um cassa por 10 anos os direitos políticos do ex-presidente. O general Castelo Branco rompe as relações do Brasil com a China e adota uma política externa de alinhamento automático aos Estados Unidos.

O Brasil só reatará as relações com a China em 1974. Daí se seguiram duas décadas de um progressivo, mas lento, processo de aproximação entre os dois países, impulsionado pela política pragmática de reforma e abertura da China, conduzida por Deng Xiaoping a partir de 1978, e pela redemocratização do Brasil a partir de 1985. A relação entre os dois países ganha um novo e consistente impulso nesta década de 2000 nos governos de Lula e Hu Jintao. A ampla e audaciosa agenda estabelecida por ambos os governantes favoreceu o comércio bilateral e aprofundou os laços políticos entre Brasil e China que passaram a atuar no cenário internacional de maneira politicamente concertada.

O discurso de Jango antecipa em 50 anos a política externa do governo Lula. E, naquela ocasião, foi percebido como uma ameaça para a nação. Mas se ainda há no Brasil alguém que perceba a China como uma ameaça comunista, tal como se a via nos tempos de Jango, este alguém deve acordar do pesadelo da ditadura brasileira e da Guerra Fria e se dar conta de que estamos no ano de 2013. O Brasil é governado pelo Partido dos Trabalhadores que estabeleceu relações mais próximas com a China e não há qualquer ameaça de ditadura de esquerda.

E no mundo real todos querem a China como parceiro; não só os comunistas.

Em dezembro deste ano, o Primeiro Ministro britânico David Cameron, em entrevista coletiva na China após reunir-se com o Primeiro Ministro chinês, Li Keqiang, no Grande Salão do Povo, disse: “a transformação da China é um dos fatos que definem a nossa vida. (…) Eu vejo a ascensão da China como uma oportunidade, não apenas para o povo deste país, mas para a Grã-Bretanha e o mundo”. Na ocasião, informou que o governo britânico não estabelecerá limites de investimento chineses na Inglaterra, prometeu defender o acordo de livre comércio entre a China e a União Europeia e declarou, ainda, que a Grã-Bretanha atuará como forte defensora da China no Ocidente. Retórica diplomática? Acho que não. É business, sobretudo. Mas Cameron foi mais além.

O Primeiro Ministro britânico inovou ao abrir uma conta no famoso microblog chinês Sina Weibo visando estabelecer um canal de comunicação direto com os chineses. Já na primeira semana ele publicou sete posts – com um detalhe importante: todos em mandarim! Um de seus posts foi compartilhado e comentado mais de 20.000 vezes e o número de seguidores dele na China ultrapassou os 260.000 em uma semana – número aproximado ao de assinantes dos dois principais jornais ingleses, The Guardian e The Financial Times. Em uma de suas mensagens no microblog, Cameron pede que seus seguidores chineses fiquem à vontade para fazer perguntas pois ele iria responder algumas delas antes do encerramento de sua visita oficial à China.

Não há o menor risco de os ingleses acusarem Cameron de ser uma ameaça comunista para a Grã-Bretanha. É certo que os tempos são outros. Mas também os tempos são diferentes para cada país. Se Cameron tivesse dado aquela declaração nos tempos de Jango, provavelmente ele seria defenestrado do Poder. Mas qual seria o impacto no Brasil de hoje se algum Presidente ou candidato a presidente abrisse um conta no microblog chinês e começasse a postar comentários em mandarim? No meu Brasil, parece-me, vivemos ainda sob uma névoa de confusão ideológica para todos os lados que nos aprisiona em rótulos conceituais que precisam ser descartados ou atualizados sob pena de nos mantermos cegos para o mundo que está aí.

Os tempos de alinhamento automático se foram. Mas será mesmo que se foram?

É tempo de ter coragem para abrirmos novos canais de comunicação para a troca e o fluxo das ideias sem medo de controle ideológico de qualquer tipo, seja ele perpetrado por um governo, seja ele perpetrado pelas grandes mídias privadas que reservaram uma nota de rodapé a um dos mais corajosos políticos brasileiros. Alinhamento automático é coisa de quem vive no passado. Hoje é tempo de conexões criativas e diversas com o mundo. A China, como bem disse Jango há mais 50 anos atrás, não é a velha China que os povos ocidentais admiravam e temiam. Descobrir esta China é preciso estar no século XXI de corpo e alma. E o Brasil? Como nos vemos e como o mundo nos vê? Parte da resposta depende do tempo em que estamos vivendo e queremos viver.

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7 Comentários

  • Tiago van Tol says:

    Interessantíssimo o texto, parabéns, Evandro… Obrigado pelo link do vídeo de Jango, excelente!

  • Regina Aniz says:

    E afinal descobriram o que causou a morte de Jango?

  • Dennis Godoy says:

    Excelente texto! Grato por compartilhar uma realidade ainda pouco difundida no Brasil.

  • James Hershberg says:

    Very interesting. For a historical project, I am trying to determine which PCB members accompanied Goulart to China in August 1961 and met with Mao Zedong in Hangzhou on 19 August 1961; I believe one of them may have been PCB CC member Apolônio Pinto de Carvalho but there were apparently one or two others. Any help would be very much appreciated! You may email me with information.

    • Caro James,
      Muito obrigado pelo seu comentário bastante interessante. Tenho que checar a informação que você destacou. Ficamos em contato. Escreverei para o seu email. Abraço! Evandro Menezes de Carvalho.

  • Lídia says:

    Olá, gostaria de saber quem é que está na foto com Jango!

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