02 jun 13

EUA, China e o soft power

Blog_Yin_Yang[China.EUA]

Nesta semana, nos dias 6 e 7 de junho, os dois homens mais poderosos do planeta vão se encontrar. Após três meses de sua posse, Xi Jinping irá aos EUA a convite do Obama. Fato digno de nota. Afinal, os seus antecessores – Jiang Zemin e Hu Jintao – fizeram suas primeiras viagens aos EUA somente alguns anos após terem assumido o governo chinês. Obama recepcionará Xi em Sunnylands, na Califórnia. O lugar é convidativo e relaxante (http://sunnylands.org). Mas a ampla gama de assuntos bilaterais, regionais e globais perturbam o sono dos dois chefes de Estado. Cyber segurança, as Coreias, Irã, Síria, Oriente Médio, Ásia Central, crise econômica e financeira, conflitos comerciais na OMC e meio ambiente, devem compor o cardápio dos cafés, almoços e jantares. O objetivo principal, contudo, é estabelecer um bom relacionamento pessoal entre eles que permita discutir formas de cooperação e de gestão das diferenças de maneira mais eficaz para os próximos anos. O esforço é válido.

A ascensão econômica da China e sua relação com os EUA têm suscitado inúmeros debates sobre o futuro do mundo. Muitos se perguntam se os dois países entrarão em conflito deliberado ou se saberão estabelecer uma relação de cooperação pacífica. Dado que a história da humanidade é marcada por guerra e paz, fazer tal indagação tem a sua pertinência garantida.

Na busca de respostas, analistas se debruçam sobre dados que evidenciam o poder das duas nações para este século. De um lado, o chamado hard power e, de outro, o soft power. Este último conceito foi delineado pelo cientista político estadunidense Joseph Nye e tem sido muito discutido aqui na China. Trata-se da habilidade de exercer influência sobre outros países sem fazer uso da coerção, força ou dinheiro, ou seja, sem recorrer ao hard power. Para David Shambaugh, também cientista político e em recente entrevista concedida à Folha de São Paulo (http://bit.ly/14M6fbX), a China não tem soft powerporque nenhum país quer imitá-la”. Em outras palavras, nenhum país vê a China como um modelo a ser seguido. Está implícito nesta afirmação que: 1) muitos países querem imitar os Estados Unidos e 2) que a China tem a pretensão de ser imitada. Entretanto, neste jogo de imitação, a China parece estar menos interessada em ser copiada e mais preocupada em aprender e copiar os outros – sobretudo os países desenvolvidos – naquilo que eles têm de melhor.

A China está, em doses controladas, transformando-se em uma economia de mercado. Para alguns, isto é um sinal de adesão ao modelo estadunidense de desenvolvimento econômico. Há controvérsias. As empresas estatais chinesas são os principais players no mercado. O Estado está no controle e quer aprender e dominar as regras do jogo global. E a China é aluna aplicada, presta atenção em tudo o que o “professor” diz e faz para se tornar a melhor aluna e, possivelmente num futuro próximo, tomar o lugar do professor. Aprender e copiar quem joga bem está longe de significar uma adesão ao modo de pensar e agir do outro. É arriscado afirmar, portanto, que a China quer aderir aos ideais e valores ocidentais representados pelos EUA.

Além disso, há diferenças de enfoque na relação que estas duas grandes potências estabelecem com o mundo. Além de bens e serviços, os EUA ocupam-se em exportar valores tais como “democracia”, “liberdade de expressão” e “direitos humanos”, porque veem neles o fundamento político que justifica a sua ação (muitas vezes, intervenção) no  mundo e, consequentemente, a manutenção de seu poder. A China, por outro lado, ocupa-se em vender, tão-somente, mercadorias. E se há um valor que ela dedica-se a exportar é aquele que diz respeito ao “princípio da diversidade” dos Estados como força motriz da civilização humana. Para a China, o Ocidente ignora este princípio quando se trata de se relacionar com diferentes valores e ideologias. Por ocasião do Boao Forum for Asia Annual Conference, em 7 de abril deste ano, Xi Jinping declarou: “o oceano é vasto porque admite centenas de rios. Nós devemos respeitar o direito de um país a ser independente e a escolher seu sistema social e o seu caminho de desenvolvimento, remover desconfiança e dúvidas, e transformar a diversidade do nosso mundo e a diferença entre os países em dinamismo e força motriz para o desenvolvimento.” A China quer se modernizar e introduzir a economia de mercado em seu território, mas ao modo chinês; e ainda quer dialogar com o mundo sem querer transformá-lo nela mesma.

Conversando com alguns colegas chineses perguntei-lhes se eles gostariam que a China se tornasse um “EUA”. As respostas foram diversas. Aquela que mais me chamou a atenção pela sutileza que nela está implícita é a que disse que os chineses admiram os EUA “como um lugar para se estar” e não “como um país”. Logo pensei no sentido dos caracteres que designam “EUA” e “China” no idioma chinês. O primeiro escreve-se “美国” (meiguó). Se considerássemos o sentido isolado de cada um dos dois caracteres traduziríamos esta expressão como “país belo”. A China, por sua vez, escreve-se “中国” (zhongguó), que poderia ser traduzido como “país do centro” ou “país do meio”. Qual característica pesaria mais na constituição da autoimagem da China? E se além de ser o centro do mundo a China também se percebesse tão bela quanto os EUA em sua paisagem urbana concreta cheia de símbolos de riqueza? O centro financeiro de Shanghai é o retrato (ou quase uma cópia?) mais próximo desta aspiração, deste sonho.

É por isto que a mídia chinesa tem repercutido uma discussão sobre se o tão propalado “sonho chinês” não se confundiria com o “sonho americano”. Este último é comumente associado à ideia de riqueza material obtida por meio do próprio esforço pessoal em um ambiente de igualdade de oportunidades sem rígida hierarquia social e livre de discriminações raciais, religiosas, de classe, sexo etc. O “American Dream”, como expressão de um sonho capitalista, estimula o indivíduo “comum” a aspirar tornar-se rico. A classe média estadunidense é identificada como aquela que está trabalhando para isto. O problema é que o “sonho americano” tem se tornado um pesadelo para muitos cidadãos estadunidenses depois da crise econômica. Desde então, tem havido pouca mobilidade social nos EUA de modo que quem nasce rico tenderá a permanecer rico; e se nasceu pobre, provavelmente morrerá pobre.

A ironia desta história é que a China está produzindo milionários a cada dia e tornou-se, segundo o Boston Consulting Group, o terceiro país com maior número de milionários – atrás dos EUA e do Japão. Os chineses estão levando a sério a famosa frase de Deng Xiaoping: “ficar rico é glorioso”. A sociedade e o sistema de classes que emerge desta nova e muito antiga China dinâmica são aspectos importantes para se acompanhar e entender as transformações por que passa este país apesar da ainda rígida hierarquia social que caracteriza a cultura chinesa nas estruturas familiares, do partido e das empresas. Mas algo parece estar mudando nos grandes centros urbanos como Shanghai.

A China quer acompanhar a evolução dos tempos, mas com um projeto de grandeza nacional que, se não é pensado para ser exportado para o mundo, é planejado para engajar os próprios chineses em torno dele e afastar a “teoria da ameaça chinesa” para o mundo. Assim, diferentemente do “sonho americano” que está centrado na grandeza do indivíduo, o “sonho chinês” – mote do governo de Xi Jinping (http://bit.ly/15sBxVt) – está orientado para a grandeza da China como país, onde a sua industrialização, urbanização e o rejuvenescimento da nação estão no centro das suas preocupações.

Isto não exclui os esforços da China de promover a sua cultura pelo mundo afora a fim de torná-la mais influente e respeitável. O Instituto Confucius (http://www.chinese.cn) tem possibilitado o aumento do número de pessoas interessadas em aprender o mandarim e a cultura chinesa. São mais de 400 Institutos Confucius em mais de 100 países. Em 2015 espera-se chegar a marca de 500 Institutos e mais de 1.5 milhão de estudantes matriculados. As bolsas de estudo para estrangeiros concedidas pelo China Scholarship Council também cumprem um papel importante na promoção da imagem da China. Na busca de soft power até a primeira-dama, Peng Liyuan, entra na roda. Famosa cantora na China (http://bit.ly/UeIl3n), tem se tornado ainda mais popular ao acompanhar o marido nas viagens internacionais e participar de atividades de cunho social e filantrópico. E tem dado certo. Ela e o Presidente Xi Jinping entraram na lista das 100 pessoas mais influentes do mundo publicada pela revista Time. (http://time100.time.com/2013/04/18/influence-times-two/)

A nova China que está em processo de gestação há mais de três décadas pode até não ser aquela que todos querem imitar, como afirmou David Shambaugh, mas é uma China que se esforça para ser, ao menos, bem acolhida pelo mundo. O soft power dela tem outro objetivo: não se trata de querer influenciar os outros, mas de ser aceita pelos outros. Talvez seja o que ela precise neste momento: portas abertas. Para isto, assume o discurso de respeito às diferenças e se abre para copiar os países desenvolvidos naquilo que seja útil para o seu projeto de nação traduzido no chamado “sonho chinês”. Pode levar muito tempo para que este sonho se realize. Mas a China está mais preocupada em acertar na medida e na direção das decisões tomadas para atingir seus objetivos do que no tempo que levará para alcançá-los.

O mito chinês da criação que conta a história de Pan Ku (uma figura mítica que representa o primeiro ser vivo que criou tudo o que existe) difere da narrativa bíblica para a criação divina do universo em um quesito essencial: o tempo. No Gênese, Deus criou a Terra em seis dias e descansou no sétimo. Na mitologia chinesa, Pan Ku levou 18 mil anos para criar o universo e dar origem à Terra (Yin) e ao Paraíso (Yang). Para os chineses, ter domínio sobre estes dois planos é um ideal de ser. O primeiro, no peso de sua essência yin, caiu e tornou-se terra; o segundo, na leveza de sua essência yang, levantou-se e tornou-se céu. Um é hard, o outro é soft. Os chineses sabem a diferença de um e outro muito antes de Joseph Nye.

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2 Comentários

  • Izandra Mascarenhas says:

    O que eu acho mais interessante na política da China é o fato de que eles não importam os costumes dos outros países sem levar em conta a própria realidade social. Pode parecer meio óbvio, mas é algo que muitos países se esquecem.
    Veja o Brasil; adora copiar modelos norte-americanos e europeus, sejam jurídicos ou de assistência social, mas se esquecem que seria muito melhor se inspirar nos outros países da América Latina, que possuem uma realidade muito próxima (nisso, bato palmas para um artigo do Virgílio Afonso da Silva, “Integração e Diálogo Constitucional na América do Sul”).
    A China vem criando seus próprios modelos, baseados em sua própria realidade. Li recentemente uma matéria no Washington Post que mostra isso (http://www.washingtonpost.com/national/graying-china-taps-rural-elderly-to-care-for-those-even-older/2013/05/28/9c0d0990-c171-11e2-ab60-67bba7be7813_story.html), e achei interessante a forma como eles lidaram o o problema dos idosos no meio rural. Ao invés de copiar o modelo de wellfare state, onde o Estado iria desenbolsar enormes somas apenas para manter os idosos das zonas rurais, encontraram uma forma de gastar menos e, ainda assimm fornecer assistência. Lógico, é um modelo que ainda apresenta falhas, como é dito na notícia; mas, ainda assim, um excelente passo dado, onde o Estado não negligencia uma parcela da população e nem gasta absurdos com ela (inclusive porque a mesma não oferece mais retorno econômico).
    E sobre a afirmação do oresidente chinês, vale lembrar que os dois Pactos de 1966, tanto o de direitos Políticos e Civis, quanto os de direitos Econômicos e Sciais, defendem uma máxima na sociedade interncional: o direito à autodeterminação dos povos. Uma pena que os próprios ratificantes não costumam levar isso à sério, preferindo intervir descaradamente sobre a desculpa de proteção de certos valores…

    • Maria Inez Salgado de Souza,PhD says:

      Muito interessante o artigo, pois lança alguma luz sobre o que a China procura enquanto se aproxima mais e mais do mundo capitalista. A argumentação porém não satisfaz de todo o leitor. Imagino que as questões históricas e sociológicas da China ainda não de todo reveladas merecem um envolvimento maior do ocidente para que se possam encontrar caminhos de entendimento e não apenas as questões de ordem econômica.

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