25 out 20

De qual China está se tratando?

China aprova controversa lei de segurança para Hong Kong

O conflito entre Estados Unidos (EUA) e China era inevitável diante das previsões de que a economia chinesa poderá superar a americana em poucas décadas, mas foi antecipado por diversos fatores. Um deles é menos visível. O Ocidente desenvolvido, democrático e capitalista, fracassou nas suas tentativas de conversão da China em um regime similar ao seu. O Reino Unido, por exemplo, apostava que o modelo econômico e político de Hong Kong iria seduzir e persuadir o povo chinês a querer replicá-lo em todo o país. A admissão da China na Organização Mundial do Comércio, em 2001, alimentou expectativas de que o compromisso jurídico chinês com as regras do comércio internacional influenciaria a sua economia e, por consequência, provocar transformações no seu sistema político. A atração de estudantes chineses para as universidades estadunidenses e britânicas não alcançou o objetivo de fazer esses jovens defenderem o Western way of life.

Já que o soft power não funcionou, os EUA começam a fazer uso do hard power. É ilustrativa a decisão de impor sanções a bancos e empresas que façam negócios com chineses envolvidos na nova Lei de Segurança Nacional de Hong Kong. Tal medida pode ressoar para o chinês como vestígios das Guerras do Ópio do século XIX, que resultaram na tomada do território de Hong Kong pelos britânicos e na abertura de vários portos ao comércio de ópio da Grã-Bretanha.

Designar o conflito entre EUA e China como “nova Guerra Fria” não ajuda a pensar o problema em sua singularidade e complexidade por se distinguir, em muitos aspectos, da Guerra Fria do pós-Segunda Guerra Mundial. Os EUA e a antiga União Soviética não tinham laços econômicos estreitos e, por essa razão, podiam jogar um jogo de soma-zero. Parte da estratégia estadunidense consistia em atrair a União Soviética para o seu modelo econômico baseado no livre mercado e, com isso, desmoronar o edifício ideológico legitimador do comunismo soviético. O contexto atual da relação entre EUA e China é diferente.

Há uma interdependência econômica entre os dois países e um intercâmbio intenso de seus nacionais, de modo que um jogo de soma-zero é prejudicial para ambos. Daí se entende o esforço de Donald Trump em promover a dissociação (decoupling) econômica dos EUA da China. Contudo, o modo como os EUA lidam com esta situação contém um paradoxo: de um lado, querem isolar a China do resto do mundo e, de outro, promovem seu autoisolamento. O caso do 5G da Huawei é um exemplo do esforço americano de excluir a China de um setor em que ela tem a vantagem tecnológica. Já a decisão de Trump de retirar os EUA do Acordo de Paris, da Parceria Transpacífico (TPP), da Organização Mundial da Saúde e da UNESCO são exemplos do seu distanciamento do multilateralismo.

A China não é uma ameaça para o Ocidente por razões ideológicas. Desde a Conferência de Bandung, em 1955, ela afastou-se do bloco comunista soviético para tomar assento no grande grupo de países em desenvolvimento, que priorizavam a cooperação econômica. Na diplomacia, a China tornou-se ecumênica politicamente a ponto de, em 2017, ter promovido uma inédita reunião com mais de 200 partidos políticos, comunistas e não comunistas, de 120 países. Na retórica diplomática, chama-se a isso de “pragmatismo”.

De fato, qualquer país que esteja na posição de desafiante dos EUA – tal como o Japão na década de 1990 – enfrentará duros obstáculos pelo caminho. Mas tampouco será fácil para os estadunidenses. Afinal, como observou Kishore Mahbubani em artigo na National Interest, a China tem sido percebida como o país mais competente do mundo. Com base no Edelmant Trust Barometer, Mahbubani lembra que a China é o país no qual os cidadãos têm a maior confiança em seu governo. Não há por que duvidar. Nos últimos quarenta anos, os chineses experimentaram uma melhoria nas condições de vida sem precedentes em toda a sua história.

O Partido Comunista da China (PCCh) goza de legitimidade junto ao povo chinês, e esse fato pouco tem a ver com o apoio popular ao regime comunista, mas com um modelo de governança que tem raízes históricas mais antigas que o comunismo do século XX. Em outras palavras, a China não é comunista; antes, ela é Han. Enquanto o Ocidente não entender isso, não saberá conviver com a China. Por mais que o Estado chinês se descreva como multiétnico, o fato é que mais de 90% da população de 1.4 bilhão de habitantes são da etnia Han. Essa identidade étnico-cultural milenar explica muitos aspectos da sociedade chinesa e do modo como ela se relaciona com o mundo. Parte substantiva da legitimidade do PCCh decorre do dever que carrega para si (e é o que o chinês espera dele) de proteger essa coletividade, sua cultura e sua história. Mas se essa identidade étnico-cultural é a força que une o país, nela também reside a sua fragilidade quando se trata de se relacionar com o mundo.

Diferentemente dos países americanos que nasceram da emigração e miscigenação de raças e que, por isso, são mais abertos ao convívio efetivo entre culturas, a China ainda tem dificuldades de se integrar ao mundo em um grau elevado de interação. A crescente presença chinesa em vários países poderia contradizer essa afirmação. Todavia não é o caso, pois a expansão da China no mundo se explica por um motivo: o seu tamanho, que lhe impõe a necessidade de buscar energia e matérias-primas. É uma questão de sobrevivência do seu povo, e não um desejo de dominação.

Sendo assim, a retórica do combate contra o regime comunista da China será percebida pelos chineses como pretexto para retirar-lhes o direito de existir como nação. É preciso que os países se perguntem quais serão as consequências para o mundo com uma China derrotada ou vitoriosa depois de ter sido discriminada pelo Ocidente. É hora de a comunidade internacional sair da perigosa posição de espectador para atuar em defesa do diálogo e da estabilidade global. Essa é a grande tarefa a ser feita.

 

 

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