12 ago 14

China para além dos estereótipos

Lujiazui2

Faz um ano e meio que estou na China. A minha impressão é que o tempo vivido neste país será sempre insuficiente para conhecê-lo em profundidade. Tenho encontrado muitas pessoas que se apresentam como “especialistas em China”. Surpreende-me a pretensão. Às vezes são pessoas que só vieram aqui por alguns dias ou semanas e sequer possuem um nível básico do idioma chinês. Muitos leem sobre a China em livros escritos também por pessoas que sequer passaram um ano inteiro em completa imersão cultural neste país. Além disso, há poucos livros sobre China escritos por chineses que tenham sido traduzidos para um dos idiomas ocidentais mais acessíveis para nós. As muitas obras em inglês que tratam da China foram escritas por não-chineses. E aí todo cuidado é pouco. Por quê?

Falar de um país que não o nosso nos coloca inúmeras questões. Geralmente a nossa primeira percepção sobre um país ou um povo é influenciada por estereótipos consolidados em nossa própria cultura. Por exemplo: a imagem que temos do “alemão” contrasta com a que temos do “brasileiro”. Faz pouco e vimos a Alemanha ganhar a Copa do Mundo no Brasil. Todos elogiaram o planejamento e a disciplina dos alemães como sendo o segredo do sucesso deles. Mas uma pergunta fica no ar: e se tivesse sido a Argentina a campeã? O que explicaria este eventual resultado?

Os estereótipos definem o modo como enxergamos cada um dos povos e, por contraste, a nós mesmos. Nós nos vemos ou somos visto (ou nos deixamos ser vistos) a partir de certos pontos de vista. Assim, os estrangeiros costumam “ver” o Brasil como o país do samba, do futebol e carnaval. Seríamos um povo alegre, despreocupado, quase irresponsável com seu próprio destino. Os estrangeiros desconhecem a elevada taxa de homicídio em nosso país e também o quanto somos trabalhadores. Mas ainda assim seríamos, como disse Nelson Rodrigues, uma “pátria de chuteiras”.

Quase sempre os estereótipos possuem uma forte carga de discriminação, sendo uma “ameaça” para quem dele é vítima e assim, sem querer, sabota sua própria capacidade de construir sua própria identidade. Muitas vezes, na falta de saber ver a si próprio como se é ou se quer, definimo-nos a partir do olhar (que temos) do outro. Aí é quando falar mal do outro torna-se uma estratégia para, indiretamente, dizer algo mais sobre nós mesmos. O problema está neste “algo mais”.

Qual a percepção que os brasileiros temos da China e dos chineses?

Os vários comentários que já ouvi me fizeram estabelecer alguns limites nesta discussão. Penso que há duas visões estereotipadas sobre a China que estruturam, de modo bastante simplificado e também equivocado, o nosso modo de ver este país. Ambas são bastante recorrentes na mídia, nos diálogos entre amigos, e, por força de uma repetição discursiva sem muito embasamento, tornam-se o retrato supostamente fiel de uma nação com mais de um bilhão de habitantes. Mas o tom amarelado deste retrato se deve ao fato dele estar guardando há muito tempo no arquivo de nossa memória sem nunca ter sido atualizado para os recursos atuais de compreensão da “fotografia” contemporânea da cultura chinesa.

O primeiro estereótipo é aquele que parte de uma visão negativa da China comunista. Atribui-se a esta China e, portanto, ao comunismo, características tais como o autoritarismo, a ausência de liberdade  de expressão, o desrespeito aos direitos humanos, a falta de democracia. Esta visão revela uma compreensão limitada – senão estéril – do comunismo, ao enquadrá-lo nos limites do jogo político e discursivo da época da Guerra Fria. Além disso, ela escamoteia o fato de que países capitalistas e democráticos possuem suas formas típicas de imposição autoritária da vontade de alguns sobre o resto da população, pondo abaixo a realização do bem-estar social. Esta equação da desigualdade de poder decorre não do sistema econômico, mas do fato da escassez e também da condição humana. Entendo que Freud explica este mal-estar melhor que os economistas.

A China de hoje não se enquadra naquele conceito datado de “comunismo” e tem dominado rapidamente a lógica do capitalismo. Parece-me mais apropriado dizer que a China não é nem capitalista e nem comunista, ela é … chinesa. Em outras palavras, ela é e será o que tiver de ser para realizar o seu projeto de nação, qual seja, a de ser um país desenvolvido e, sobretudo, respeitado pelo mundo inteiro, resgatando definitivamente o seu orgulho outrora roubado pelas potências ocidentais e ferido na guerra de resistência contra o Japão. Esta é uma questão crucial para o governo chinês a ponto de projetar, no dia 13 de agosto passado, num vistoso edifício situado em Lujiazui (foto deste post), área nobre e agitada do Pudong em Xangai, os seguintes caracteres chineses: “勿忘国耻” (leia-se: Wù Wàng Guó Chi). Tradução: “nunca se esqueça da humilhação nacional“, celebrando naquela data o 77o aniversário da batalha de Xangai contra os japoneses.

O segundo estereótipo peca pelo excesso de romantismo. É aquele que vê a China sob a ótica do taoísmo, do confucionismo, do zen-budismo, de sua culinária exótica para o gosto ocidental. Em uma cidade como Xangai, com seus arranha-céus, tráfegos intensos, vida acelerada e adaptada aos hábitos ocidentais, aquela China zen pouco se vê.

Em que pese os estereótipos possam guardar algo de crível sobre o país a que se refere, a China não é nem aquela descrita como “autoritária” e tampouco a que se quer “exótica”. Definir a China por meio de um destes dois estereótipos é reduzi-la ao que ela não é mais atualmente. Aliás, desconfio de quem diz o que é a China hoje. A tarefa é difícil; senão impossível. O máximo que arrisco dizer é que a China atual é um país de contradições vivas que estão em constante diálogo. Deixarei para outros posts os exemplos que me fazem sustentar tal opinião.

A China não é um país que se desvenda com olhares de turista. Provavelmente nenhum país é assim desvendado. Mas se, para nós, entender e sentir uma Espanha, uma Itália, uma França, um Estados Unidos, não nos exige pouco mais de alguns meses, quando tratamos de China, é preciso mais tempo. Não se conhece um país, sua cultura e seu povo apenas através de livros e de um contato superficial com ele. É preciso vivenciá-lo, experimentá-lo, pôr-se em situação similar a de um chinês, mesmo que isto nos traga algum desconforto inicial. E aos poucos, sem saber, a culinária, a música, o idioma, o jeito do chinês de viver e de se relacionar vão, pouco a pouco, sendo assimilados por nós. Este processo é lento mas quando acontece então o “jogo” começa a ser jogado. Leva-se tempo. Estou há um ano e meio na China. Mas a minha sensação é a de que somente agora comecei a entender um pouco melhor este país, sua cultura e seu povo, também porque comecei a percebê-los com o coração. Os antigos estereótipos sobre a China que eu havia trazido comigo quando aqui pisei pela primeira vez no dia 12 de fevereiro de 2013 caíram todos por terra. Tal como uma cortina de teatro que se joga ao chão para dar início a uma história nova que se desenrola ante os olhos maravilhados do espectador. Mas com um detalhe importante: este espectador se deu conta de que também está no palco.

Obs.: a foto do post foi publicada no Shanghai Daily de 13 de agosto de 2014, página A4. Não havia referência do autor da foto.

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