China: a evolução da governança baseada na lei
A 5ª Sessão Plenária da 13ª legislatura da Assembleia Popular Nacional (APN) da China e a sessão do 13º Comitê Nacional da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês (CCPPCh) concluíram-se no dia 11 de março em um momento em que as incertezas quanto ao futuro da ordem internacional só aumentam. Desde a crise financeira de 2008, que teve os Estados Unidos como epicentro, a China vem se preparando para cenários de maiores desafios no âmbito global e doméstico. A inesperada pandemia, a guerra comercial iniciada pelo ex-presidente estadunidense Donald Trump contra a China e, agora, a guerra da Rússia contra a Ucrânia adicionam ainda mais incertezas. Do “novo normal” (que prevê crescimentos do PIB chinês em torno de 5.5% a 6.5%) até a chamada “circulação dupla” (política econômica com ênfase no mercado doméstico) o governo chinês tem procurado ajustar a sua economia às circunstâncias internacionais do momento, sem perder de vista os seus objetivos de construir um país socialista moderno até 2035, no caminho para uma transformação abrangente até 2049, que marcará o centenário da fundação da República Popular da China.
No 14º Plano Quinquenal, aprovado no ano passado, o governo chinês externou que ainda há muito a ser feito para o bem-estar da população em razão das “disparidades de desenvolvimento entre áreas urbanas e rurais e entre regiões e na distribuição de renda”. Mas também sublinhou que a China tem vantagens institucionais significativas e “melhorado o seu desempenho na governança” do país. De fato, o sistema político chinês tem sido um fator determinante para o desenvolvimento econômico da China desde o início da política de reforma e abertura no final da década de 1970. Com o atual governo de Xi Jinping, a China aprofunda as reformas internas e a sua abertura para o mundo. Um tema atravessa essas duas dimensões e tem se destacado na atualidade: a promoção do chamado estado de direito socialista com características chinesas.
Já no início do seu primeiro mandato, o presidente Xi Jinping havia apontado o fortalecimento do Estado de Direito como uma das “quatro disposições estratégicas integrais” de seu governo [1]. Um sistema jurídico eficiente passou a ser indispensável para a governança de uma China cada vez mais complexa, sofisticada, com uma classe média crescente que deverá chegar a 800 milhões de pessoas em 2035 e uma economia com presença global. Muitos analistas ocidentais viam e ainda veem com ceticismo a possibilidade de a China ter uma governança jurídica avançada. Mas durante o governo de Xi Jinping, essa agenda evoluiu de maneira considerável.
Vejamos alguns fatos:
No primeiro ano de seu mandato como presidente, em 2013, por ocasião da 3ª Sessão Plenária do 18º Comitê Central do Partido Comunista da China (PCCh), Xi Jinping anunciou a reforma do sistema judicial como uma das medidas mais importantes do conjunto das reformas. No ano seguinte, em 2014, no contexto das celebrações dos 65 anos de fundação da República Popular da China, a 4ª Sessão Plenária do 18º Comitê Central do PCCh entrou para a história como a primeira plenária dedicada especialmente ao tema do Estado de Direito. Na ocasião, aprovou-se uma resolução com o propósito específico de aprimorar o sistema jurídico e estabelecer um Estado de Direito socialista com características chinesas. Em 2017, durante a 5ª Sessão Anual da 12ª Assembleia Popular Nacional (APN), aprovou-se as Cláusulas Gerais de Direito Civil, que entrou em vigor em outubro daquele mesmo ano. Em 2020, a aprovação do Código Civil na 3ª Sessão Anual da 13º APN, foi um marco fundamental no processo de construção do estado de direito na China. O Código Civil entrou em vigor no dia 1º de janeiro do ano passado e veicula as normas jurídicas que regem a vida civil, inaugurando uma nova etapa da governança da nação e da história do direito na China.
Para a execução do atual 14º Plano Quinquenal, o governo quer aprimorar o trabalho legislativo em áreas-chave, incluindo inovação científica e tecnológica, saúde pública, biossegurança, preservação ecológica e prevenção de riscos. Há uma clara percepção de que é preciso melhorar a qualidade da legislação e, também, do processo legislativo. Assim, no ano passado, na 4ª Sessão da 13º APN, aprovou-se uma emenda à Lei Orgânica da Assembleia Popular Nacional da República Popular da China. Essa lei havia sido promulgada em 10 de dezembro de 1982, no mesmo dia da atual Constituição da China, e descreve a estrutura organizacional da Assembleia Popular Nacional (o órgão legislativo máximo chinês) e as funções de seus legisladores. Na mesma 4ª Sessão, aprovou-se as emendas às Regras de Procedimento da APN. Essa lei, que havia sido promulgada em abril de 1989, estabelece as regras procedimentais para o processo legislativo. Nenhuma dessas duas leis havia sido atualizada até o momento. E agora, na 5ª Sessão da 13ª APN, concluída neste mês de março de 2022, os legisladores deliberaram sobre um projeto de emenda à Lei Orgânica dos Congressos Populares Locais e Governos Populares Locais. Será a sexta emenda dessa lei que foi adotada em 1979. Decidiu-se, também, que a eleição dos deputados para a próxima legislatura que se iniciará no ano que vem, deverá ter uma representação feminina ainda maior. Atualmente, as deputadas correspondem a 25% do total de representantes da atual legislatura. São 742 deputadas para um Legislativo que conta com quase 3.000 integrantes.
O governo está ampliando a representatividade da APN e atualizando as normas atinentes a todos os órgãos legislativos a fim de tornar o processo legislativo e as próprias leis mais eficazes. “Eficácia” é a palavra-chave que orienta todo o trabalho do governo chinês. Espera-se, assim, garantir a legitimidade do sistema jurídico perante a população. E eis aqui o maior dos desafios para o governo: promover a referida cultura jurídica “socialista” na sociedade chinesa. Mas o que se pode entender por uma cultura jurídica “socialista” ou, como se tem dito, uma “teoria socialista chinesa do estado de direito”? Eis um debate que a China quer implementar entre os juristas de seus país. Para vislumbrar qualquer resposta a essa questão, é preciso ter em conta, pelo menos, os Quatro Princípios Cardeais [2] que devem reger a governança da China e, mais recentemente, o “Pensamento de Xi Jinping para o Socialismo com Características Chinesas para uma Nova Era”, que foi incluído na Constituição da China na 1ª Sessão da 13ª APN, em 2018, quando se iniciou a atual legislatura. Acresce-se a isso a combinação do princípio da igualdade de todos perante a lei como expressão da realização do objetivo maior de prosperidade comum, atribuindo à aplicação do direito chinês um sentido concreto na transformação da vida das pessoas. Não é pouco o desafio pela frente. Mas vale a pena acompanhar a implementação das reformas jurídicas na China com atenção, diante da já conhecida disposição do PCCh e do governo chinês na busca por tornar realidade as metas e os objetivos planejados que anunciam publicamente.
Ao incluir a governança baseada na lei como uma de suas prioridades, o governo de Xi Jinping dá um passo adiante no aprofundamento das reformas, cumprindo com o previsto no preâmbulo da Constituição chinesa: “a tarefa básica da nação é concentrar seus esforços na modernização socialista ao longo do caminho do socialismo de estilo chinês”. Para tanto, diz a Constituição, deve-se “melhorar o sistema jurídico socialista”. Com o aprimoramento da governança baseada na lei, quer-se aumentar a segurança jurídica e a eficiência do governo na administração do país. Pode-se dizer que o “socialismo chinês para uma nova era” — expressão cunhada pelo presidente Xi no 19º Congresso do PCCh há pouco mais de quatro anos — coincide com a nova da era do direito na China.
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[1] As “Quatro disposições estratégicas integrais” do governo de Xi Jinping compreende quatro objetivos: (1) construir uma sociedade moderadamente próspera em todos os aspectos, isto é, promover igualmente o progresso econômico, político, cultural, social e ecológico, sem deixar nenhum cidadão para trás, (2) aprofundar e ampliar a reforma, (3) promover e avançar o estado de direito e (4) governar o Partido Comunista da China com rigor, isto é, aprofundar os esforços para impor uma disciplina rigorosa no Partido.
[2] Anunciados por Deng Xiaoping no final da década de 1970, os Quatro Princípios Cardeais são os seguintes: 1) prosseguir no caminho do socialismo; 2) preservar a ditadura popular democrática; 3) sustentar a liderança do Partido Comunista; e 4) apoiar o marxismo-leninismo e as ideias de Mao Zedong.
O artigo foi publicado originalmente no Conjur. Disponível aqui ou no link: https://www.conjur.com.br/2022-mar-25/evandro-carvalho-china-evolucao-governanca-baseada-lei