24 nov 13

O sonho chinês e o mundo

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Recentemente, o Departamento Internacional do Comitê Central do Partido Comunista Chinês (PCCh) convidou seis think tanks sul-americanos para discutir a viabilidade de uma zona de livre comércio entre a China e os países latino-americanos. Integrei a delegação como representante da FGV e me coube falar das perspectivas de um acordo de livre comércio entre China e Mercosul. Foram várias reuniões e visitas técnicas que ocorreram nas cidades de Pequim, Nanning, Beihai e Shanghai. Tudo custeado pelo governo chinês. O tema da palestra de abertura dos trabalhos foi “o sonho chinês e o mundo”, proferida pelo subdiretor do escritório de investigação do Departamento Internacional do Comitê Central do PCCh, Sr. Luan Jianzhang.

A relação com a América Latina é estratégica para a China. Em 2010 os chineses investiram US$ 11 bilhões na região – 24% a mais do que os US$ 8.9 bilhões investidos em 2009. A América Latina é, hoje, o segundo maior receptor de investimentos chineses, depois do continente asiático. E o Brasil é o principal destino destes investimentos, seguido por Peru, Argentina e Chile. No âmbito do comércio exterior, as exportações da América Latina e do Caribe para a China no período de 2006 a 2010 tiveram uma taxa de crescimento anual de quase 34%, passando de US$ 22.6 bilhões para US$ 72 bilhões. A China tornou-se o terceiro mais importante parceiro comercial da América Latina, e, de acordo com a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), será o seu segundo maior parceiro comercial em 2014. O sonho chinês se cruza com o sonho latino-americano (seja ele qual for) e tem o Brasil como um dos seus personagens centrais.

Luan Jianzhang afirmou que este sonho é a realização das metas estabelecidas pelo PCCh quando comemorou, em 2011, os 90 anos de sua fundação: “construir uma sociedade modestamente confortável antes dos 100 anos da fundação do PCCh e um país socialista poderoso pela prosperidade, harmonia e unidade antes dos 100 anos da fundação da República Popular da China”. Sendo assim, os anos de 2021 e 2049 determinam o horizonte do despertar chinês para o mundo.

Em um dos jantares oferecidos à delegação de sul-americanos, perguntou-se ao Vice-governador da Região Autônoma de Guangxi, o Sr. Huang Ribo (político que provavelmente seria eleito e reeleito em qualquer democracia dada a sua tarimba no trato interpessoal) qual seria o sonho chinês. Resposta: “o sonho do chinês é ter casa própria e dinheiro para viajar pelo mundo. E o sonho do governo é fazer a China retomar a situação que tinha no período da Dinastia Qing, quando detinha mais de 25% do PIB mundial”. A meta do governo é, até o ano de 2020, duplicar o PIB e o PIB per capita registrados em 2010. Neste ano, o PIB chinês representava 9.1% do PIB mundial. Hoje, o PIB da segunda maior economia do mundo ultrapassa os US$ 8 trilhões e caminha para representar 15% do PIB mundial.

Em 2009 foi feita uma ampla pesquisa sobre o sonho dos chineses.[1] Os dados demonstraram uma mudança significativa dos sonhos entre 1949 e 1978 (período de influência maoísta) e entre 1978 até princípios da década de 1990. No primeiro período, os três principais sonhos dos chineses eram os seguintes:

– ter suficiente comida (51,1%);

– lutar pela prosperidade e poder do Estado (26,5% )

– felicidade e boa saúde para os familiares (12,8%).

Na China pós-maoísta, o percentual deste último sonho cai para 7,6%; e o sonho de “um Estado poderoso” cai para 3,3%. Os três principais sonhos dos chineses da nova China passam a ser os seguintes:

– se envolver em negócios / trabalhar por conta própria e ter uma renda de 10.000 yuans (29,7%);

– ter suficiente comida e roupa (22,1% )

– ter um bom trabalho/ser promovido com um maior salário (17,7%).

Mais do que se preocupar com a subsistência pessoal e com a prosperidade do Estado, o chinês quer prosperar e ganhar mais dinheiro. Este sonho é, também, uma necessidade ante uma China que se adapta às regras do jogo capitalista. Mas aos que se apressam em ver aí a vitória do Ocidente capitalista sobre a China, é melhor ser mais parcimonioso com as emoções.

O entendimento chinês da natureza humana e da sociedade ainda tem significativos contrastes com o pensamento Ocidental capitalista. E isto influi no modo como a sociedade chinesa se estrutura e se governa. A importância de padrões comportamentais que expressam as obrigações sociais concretas do indivíduo diante de seu círculo social mais próximo persiste como elemento fundamental da dinâmica social. Para Kenneth Lieberthal, “os chineses se veem mais como partes de redes específicas de relações do que como membros comuns de uma única nação”. Assim, a noção de uma sociedade formada por individualidades agrupadas em torno de identificações comuns na disputa de certas políticas sociais não seria uma prática habitual na China. Tampouco a noção de “coletivo” se associaria à ideia de “nação” e nem se conectaria com a noção de uma obrigação social geral baseada no conceito de “humanidade”. “Nação” e “humanidade” – duas noções-chave na cultura dos Estados ocidentais – não estão presentes, necessariamente, nas raízes do modo de pensar e agir da sociedade chinesa. Assim, falar em China “capitalista” ou “comunista” sem levar em conta alguns aspectos da formação cultural da sociedade chinesa é olhar para a China na sua superfície e como uma caricatura (pra lá de distorcida) … do próprio observador. A China não é nem capitalista e nem comunista, a China é chinesa.

O sonho chinês é também aquele de resgatar a sua dignidade roubada. As feridas causadas pelas humilhações impostas pelas potências europeias no século 19 e início do século 20 estão abertas e vivas na memória do povo chinês. Luan Jianzhang fez questão de lembrar da placa afixada na entrada do Parque Huangpu, em Xangai, durante o período semicolonial chinês nos anos 1890 e 1928, e que dizia: “não é permitida a entrada de cão ou de chineses”. Esta placa ainda está lá. Alguns sustentam que há registros de que a placa não dizia bem isto aí; mas listava dez regulamentos, dentre eles: “os jardins são reservados para a comunidade estrangeira” e “cães e bicicletas não são admitidos”. Bom… de fato, a placa atual está equivocada. Ela deveria ser corrigida. Faltou incluir a “bicicleta”.

Tendo em vista as marcas do passado de país invadido e explorado pelas potências ocidentais e as características estruturais da sociedade chinesa, a China define o seu discurso para atuar no mundo e alcançar o seu sonho de se tornar um país poderoso e desenvolvido: defende o desenvolvimento pacífico a partir da cooperação de ganhos mútuos e o apoio aos países em desenvolvimento. “Somente damos apoios e não cobramos nada”, afirmou Luan Jianzhang, numa crítica indireta ao modelo de ajuda (e, às vezes, de intervenção) ocidental aos países em desenvolvimento que se baseia no envio de recursos condicionados à adoção de certas políticas afinadas com os interesses das grandes potências. E na relação com os países desenvolvidos, em especial com os EUA, a China professa o abandono do pensamento da guerra fria.

Foi irresistível para mim perguntar ao Luan Jianzhang as semelhanças e diferenças entre o “sonho americano” e o “sonho chinês”. Para ele, enquanto o sonho estadunidense consiste no desenvolvimento do Estado através dos êxitos individuais, o sonho chinês presta mais atenção no desenvolvimento integral do país e, depois, no desenvolvimento individual.

Um artigo anônimo divulgado on line no Sina Weibo, com mais de 40.000 compartilhamentos e amplamente repercutido pela mídia chinesa em dezembro deste ano, é um exemplo deste entendimento: “ame o seu país, e lembre-se sempre que o bem-estar da pessoa sempre virá com o bem-estar do país e da nação”. O comentário do jornal People’s Daily a este artigo afirmava que o destino de todos os chineses estava vinculado ao destino do país, “e só quando o país floresce pode ser garantida a liberdade e a felicidade dos indivíduos”. O título daquele artigo anônimo resume o conteúdo patriótico e nacionalista destas opiniões: “Sem seu país, você é nada”.[2]

A diferença é de foco e é, também, estrutural. Na cultura estadunidense e ocidental contemporânea, os indivíduos estão em primeiro lugar. Na cultura chinesa, acentua-se mais o coletivo ao destacar “o sacrifício individual para lograr a vitória do país”. “A diferença entre os sonhos não significa que um é mal e o outro é bom”, finaliza Luan Jianzhang. A China rejeita os esquemas de pensamento que dominaram e provocaram a divisão do mundo no século XX. Ela quer ser percebida com outros olhares.

Numa palestra que assisti na Fudan University, a professora palestrante afirmou que o sonho chinês é um pouco semelhante ao sonho americano: “uma casa grande, um carro grande e, talvez, um cachorro”. O carro dispensa a bicicleta. Mas o direito de passear livremente nos parques com o seu cachorro parece-me parte deste sonho. E não me refiro apenas aos parques da China, mas aos parques do mundo, como o Ibirapuera, o Central Park, o Jardin des Tuileries etc. Os chineses querem ganhar o mundo. E aqueles que insistem em ver o mundo em duas cores, irão dizer que a China está se “ocidentalizando” (ou que estaria assumindo os valores estadunidenses). Eu prefiro jogar as minhas fichas na opinião de um professor da Universidade de Xangai de Finanças e Economia que percebe a China atual como um país atraído pelos valores ocidentais e que rejeita seus valores tradicionais. Porém, disse ele, quando a China se tornar um país desenvolvido, trará de volta para o centro do seu mundo os valores que a forjaram como o império do meio. Talvez seja este o grande e verdadeiro sonho da China.

Neste mundo de sonhos em disputa, qual seria o sonho brasileiro?



[1] Pesquisa feita em 2009 por China Minsheng Banking Corp Ltda., Horizon Research Consultancy Group e o Canal de Viagens. A pesquisa integrou o projeto do Livro branco sobre o sonho chinês. Publicado na Revista China Hoy, edição de setembro de 2013, página 50 (Vol. LIV, n. 09). ISSN: 1003-0948.

[2] China Daily. “Patriotic article gets wide media coverage”. 5/12/13. pig. 4.

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