Brasil, China e Rota da Seda: quem perde e quem ganha
A Iniciativa Cinturão e Rota (BRI, na sigla em inglês) conta com a participação de 150 países. Como extensão natural da Rota da Seda Marítima do Século XXI, a China firmou memorando de entendimento com 22 países da América Latina e Caribe. Na América do Sul, somente Brasil, Colômbia e Paraguai não fazem parte desta Nova Rota da Seda. No caso do Paraguai, pela razão óbvia de não ter relações diplomáticas com a República Popular da China.
A dúvida sobre se o Brasil participará ou não da BRI ganhou destaque nestes dias que antecedem à vinda do Xi Jinping ao país para a reunião do G20 e sua visita de Estado em Brasília, seguida da ida dele e de Lula para a reunião de cúpula da Cooperação Econômica Ásia-Pacífico (APEC), no Peru. O Brasil estará lá como convidado. Até o momento, pelas entrevistas dadas pelas principais figuras políticas do governo Lula que estão na linha de frente das relações internacionais do país, o Brasil não assinará nenhum Memorando de Entendimento que expresse ser o mais novo participante da BRI.
A BRI não é uma zona de livre comércio e nem se baseia em um tratado multilateral. Trata-se de uma iniciativa da política externa chinesa negociada caso a caso com cada governo soberano e que tem nos investimentos em infraestrutura o seu eixo principal visando intensificar o comércio e o intercâmbio entre os povos dos países participantes. A abertura para a participação de países interessados e a flexibilidade nos termos desta participação é o atrativo da iniciativa. Este é o modo por meio do qual a China parece proteger a BRI de qualquer crítica que a considere um projeto unilateral visando a expansão de seu poder econômico globalmente. Convenhamos, a BRI é um projeto em processo contínuo de adaptação com uma proposta inicial transparente quanto aos métodos de negociação e de cooperação. Os 150 países que decidiram participar desta iniciativa viram vantagens na BRI, ao menos até o momento. Se tomarmos como referência os 193 Estados membros da ONU, quase 75% deles decidiram participar desta Nova Rota da Seda. Logo, indagamos: todos estes 150 países estariam optando por estar submetidos aos interesses da China? Evidente que não. Cada país tem as suas razões. Como também concordamos que os que não participam da BRI não estão se submetendo necessariamente aos interesses dos EUA. O assunto não é um fla-flu.
Dito isto, o que o Brasil quer da China com a “sinergia” entre a BRI e os programas do governo brasileiro de industrialização? Simples: O Brasil quer ampliar a parceria comercial com a China e atrair investimentos para os programas nacionais como o Nova Indústria Brasil. É provável que a “sinergia” promova o aumento da participação chinesa no comércio e nos investimentos? Sim. O Brasil de hoje é melhor do que o Brasil dos anos do governo Bolsonaro. Além disso, a difícil relação entre a China e os EUA e alguns países europeus pode criar oportunidades para as nações mais amigas e menos hostis à China. É o caso do Brasil.
Há outras formas de o Brasil participar da BRI ainda que de uma maneira peculiar? Acreditamos que sim, e já apresentamos algumas propostas em outro artigo publicado aqui na Fórum. Neste artigo, quero seguir com outra pergunta: o que o Brasil pode perder ao não participar da BRI?
A BRI tem duas características fundamentalmente distintas de qualquer programa do governo brasileiro. Em primeiro lugar, os programas do governo brasileiro não têm como foco investir no exterior, ao contrário da BRI. Em segundo lugar, a BRI é um programa que se articula em uma perspectiva continental visando a integração das infraestruturas que atendam aos interesses chineses tendo em conta os interesses dos países participantes, de acordo com o método de ganhos mútuos.
Tendo em conta esta perspectiva e a presença chinesa no continente sul-americano, a participação do Brasil na BRI deveria incluir a negociação de projetos e formas de participação em projetos que promovam a integração dos países do continente e do Mercosul. Considerar a relação com a China apenas na perspectiva bilateral é não enxergar as potencialidades desta parceria no âmbito regional. A China parece ter uma visão e uma execução de política externa na América do Sul mais integrada do que o próprio Brasil. Os projetos de rodovias na Bolívia, os projetos elétricos no Uruguai, a ferrovia de Belgrano na Argentina são exemplos de projetos na América do Sul inseridos no âmbito da BRI. Sem contar outros projetos no resto da América Latina, tais como o porto de águas profundas em Antígua e Barbuda, o parque industrial em Trinidade e Tobago e a estrada Norte-Sul na Jamaica. Vale ressaltar que entre 2000 e 2022, o comércio entre China e América Latina aumentou 35 vezes ultrapassando, em 2023, a marca de 480 bilhões de dólares. A China se tornou o segundo maior parceiro comercial da região. Durante a APEC, Lula verá a inauguração do Porto de Chancay, um megaprojeto que pode encurtar em um terço o tempo médio que os produtos brasileiros levam para chegar ao Oriente. O Brasil poderá se beneficiar deste porto se levar adiante o projeto do Corredor Ferroviário Bioceânico com 3.750 quilômetros de extensão, ligando o Porto de Santos ao Porto de Chancay, passando por Bolívia. A BRI tem algo a nos dizer sobre isso?
E o que a China mantém e, ao mesmo tempo, perde com esta posição brasileira de não declarar sua participação na BRI? Ela mantém a continuidade das boas relações com o Brasil na relação bilateral, junto com as oportunidades que o Brasil oferece para o capital estrangeiro. O que ela perde? Se os 150 países – e, no nosso caso, os 22 da América Latina que participam da BRI – perceberem que não faz diferença nenhuma estar ou não na BRI, arrisca ver o seu projeto perder vigor aos poucos. A China terá que demonstrar aos países participantes da BRI que estar nela é mais vantajoso do que não estar. Este será o desafio chinês para os próximos anos.
Uma última reflexão, se se a acredita que a China não reduzirá seu interesse em investir e fazer comércio com o Brasil, por que os EUA reduziriam o seu interesse no Brasil caso o governo Lula decidisse assinar um MoU de participação na BRI? A resposta a esta pergunta pode nos dar respostas sobre as diferenças na ação diplomática da China e dos EUA em suas relações com países que consideram parceiros e como isto pode impactar no modo como o Brasil defende os seus interesses. O debate sobre a BRI não é só sobre a BRI.
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Este artigo foi originalmente publicado na Revista Fórum no dia 3 de novembro de 2024.