A China rural já era, a nova China é urbana
Imagine um condomínio com 28 torres, cada uma com 24 andares e 4 apartamentos de 150 metros quadrados por andar. Supondo uma média de 3 moradores por apartamento, este condomínio pode ter mais de 8.000 moradores – uma população equivalente a de muitas pequenas cidades brasileiras tais como Dores do Turvo (MG), Cocal dos Alves (PI), Marechal Floriano (ES), Westfália (RS), São Bonifácio (SC), Uchoa (SP) e Quixabá (PE). Este foi o cálculo que fiz ao ver um condomínio aqui em Xangai – cidade com uma população de mais de 24.15 milhões de pessoas, acima do dobro da população de Portugal. O síndico daquele condomínio é quase um prefeito; e o prefeito de Xangai é quase um Presidente de um país.
A China passa pela maior transformação urbana de sua história. Cidades inteiras são planejadas, ampliadas e construídas com muita rapidez para acolher chineses oriundos das áreas rurais e atrair novos investimentos. O governo aposta na urbanização do país para estimular o consumo interno e o desenvolvimento da nação em tempos de crise econômica mundial. Nos últimos dois anos (2012-2013), quase 40 milhões de pessoas deslocaram-se para as grandes cidades. Contando as últimas três décadas, somam-se mais de 500 milhões de cidadãos chineses que se mudaram para os centros urbanos. Esta migração interna terá impacto no futuro da China. Atualmente, mais de 50% da mega população do país vive nas áreas urbanas (percentual ainda baixo se comparado com os países desenvolvidos cuja média é de 80%, e com os países em desenvolvimento com similar renda per capita chinês, cujo percentual de urbanização é de 60%). A expectativa do governo é que este percentual se eleve para 60% em 2020. Em 2030, a China pode vir a ter um bilhão de pessoas vivendo nas cidades. Aquela China rural do século XX é coisa do passado.
A convite do Departamento Internacional do Comitê Central do Partido Comunista e representando a Fundação Getulio Vargas, visitei a cidade de Beihai, no Sul da China. E, recentemente, por iniciativa do Foro Brasil-China, pude conhecer a cidade de Taicang. Estas duas cidades são exemplos da nova urbanização chinesa. Avenidas largas, imensos condomínios, praças, ciclovias, tudo muito limpo e organizado. Impressiona. Taicang é relativamente pequena para os padrões chineses: tem 450 mil habitantes. Em razão da proximidade com Xangai e do custo de vida ser relativamente mais baixo, mais de 200 empresas alemãs ali se instalaram. O apoio do governo local foi essencial para esta concentração germânica. As novas cidades cumprem, também, um papel estratégico na atração de investimentos estrangeiros.
A urbanização da China é a grande aposta do governo chinês. Nas cidades que visitei há um Centro do Planejamento construído com a finalidade de exibir para os moradores e visitantes os projetos de desenvolvimento para aquela cidade. Na entrada, há uma imensa e detalhada maquete, seguida de fotos, mapas e pôsteres contando a história e a evolução da cidade até os dias atuais. Ao final da visita, entra-se numa sala de cinema que exibe imagens da cidade no futuro próximo. No caso de Beihai, o cinema era 3D. E, por fim, o mais importante de tudo: muito do que se vê na telona já pode ser visto na realidade. A China não só planeja, mas também executa. E estes Centros do Planejamento cumprem o objetivo de tornar acessível e didático para a população os projetos de desenvolvimento para a cidade previstos pelo governo. Isto é um exemplo de transparência e visão de longo prazo na gestão dos centros urbanos.
Xangai, onde moro atualmente, também tem o seu Centro do Planejamento (foto deste post). No espaço de 15 anos, tornou-se uma das mais modernas cidades da Ásia. Na minha opinião, não deixa nada a dever para Hong Kong. O sistema de transporte é barato, eficiente e, sobretudo, seguro. As 11 linhas de metrô de Xangai levam você para qualquer lugar da cidade e transportam 8 milhões de passageiros em dias de trabalho. No facebook circulou uma imagem que compara a evolução das linhas de metrô de Xangai com as do Rio de Janeiro evidenciando as diferentes velocidades com que estas duas importantes cidades evoluem.
A consequência desta urbanização é o crescimento do setor de serviços – agora bastante visado pelas companhias estrangeiras – e, também, da dívida dos governos locais que executam dispendiosos projetos de infraestrutura para promover a sua urbanização. Além disso, há o efeito previsível do mercado aquecido: o preço dos imóveis disparou. Não é para menos. A demanda só aumenta e o número de super-ricos (aqueles com mais de 30 milhões de ativos em dólares) crescerá 80% na próxima década chinesa. Pesquisas apontam que, em 2024, Xangai e Pequim serão, respectivamente, a 5a e a 6a cidades ultra-ricas do mundo.[1] No ano passado, o preço de um imóvel em Pequim chegou a US$ 17.100 por metro quadrado. Um crescimento de 17% em relação ao ano de 2012. O aluguel do meu modesto apartamento de 87 m2 no distrito de Yangpu, nordeste de Xangai, custa o equivalente a pouco mais de 2 mil reais. E, após um ano, o aluguel aumentou em 400 yuans. Nas proximidades do Bund ou de Pudong, áreas mais valorizadas de Xangai, o preço compete com os altos valores cobrados em Ipanema e Leblon, no Rio de Janeiro.
Debate-se aqui na China se os governos locais terão recursos suficientes para atender às demandas de serviços públicos básicos – sistemas de saúde e seguridade, tratamento de lixo, fornecimento de energia etc – decorrentes da explosão populacional nas grandes cidades. O sinal amarelo já acendeu. Algumas autoridades sugerem que as cidades que acolhem mais trabalhadores migrantes deveriam receber mais recursos financeiros do governo central. Há os que defendem, por sua vez, uma solução já conhecida dos brasileiros: aumento de impostos, sobretudo o que incide sobre o imóvel. Mas para Guo Jinlong, secretário do Comitê Municipal do Partido Comunista em Pequim, “os problemas não são devidos à superpopulação, mas às funções excessivas da cidade, algumas das quais precisam ser abandonadas”.[2] Em outras palavras, ele defende a redução do papel do governo local no provimento de alguns serviços públicos. Este é um discurso cada vez mais recorrente na nova China, impulsionado pela Terceira Plenária do 18o Comitê Central do Partido que ocorreu em novembro do ano passado e que defendeu o “papel decisivo” do mercado na alocação de recursos – sob o olhar atento do Estado, claro.
O desafio da urbanização está diretamente relacionado ao problema da migração interna da população rural para as grandes cidades. Com o intuito de controlar este fluxo e evitar que esta migração pressione os custos dos serviços públicos, o governo chinês adota um sistema de licença de registro de residência chamado de hukou (户口制, hùkouzhì). Somente com o hukou da cidade onde mora é que o cidadão chinês poderá usufruir plenamente dos serviços públicos ali oferecidos, incluindo educação, saúde e previdência. Assim, o migrante chinês que sai de sua pequena cidade na área rural e vai “tentar a vida” numa grande cidade sem ter o respectivo hukou para nela morar, fica desprovido de um série de benefícios sociais. Cria-se, assim, duas categorias de cidadãos com diferentes direitos sobre os serviços públicos urbanos: os com e os sem hukou. Estes últimos são “cidadãos de segunda classe”. Esta é a divisão mais preocupante na sociedade chinesa atual.
Pode-se achar que o hukou é um instrumento de controle excessivo do governo chinês sobre o direito de ir e vir dos cidadãos dentro do próprio território. Mas como manejar o fluxo de quase 1 bilhão e 400 milhões de pessoas sem que isto provoque o desabastecimento de alimentos, energia, de remédios etc.? Costumo fazer uma analogia com o sistema internacional para termos uma melhor compreensão do tamanho do problema. O que aconteceria se não fosse mais exigido nenhum tipo de visto de trabalho ou de residência para morar em qualquer país do mundo? Para onde iria a maioria das pessoas? Qual o impacto desta efetiva liberdade de ir e vir pelo mundo afora sobre a realidade econômica e social dos países desenvolvidos e dos países mais pobres? Alguns deles provavelmente não conseguiriam dar conta da quantidade de imigrantes e outros ficariam quase esvaziados, sem força de trabalho suficiente para prover a riqueza necessária para manter o país. A China não é o mundo. Mas pelo seu tamanho populacional, é quase isso.
O hukou é geralmente concedido tendo em conta o local de origem da pessoa. Mas novas políticas de concessão de permissão de residência já estão sendo testadas em algumas cidades ou províncias. Em 2002, Xangai passou a autorizar residência permanente baseado na profissão do requerente e nas contribuições que ele dá para a cidade. O governo da província de Guandong introduziu um sistema de pontos que indica se o trabalhador migrante pode ter ou não o hukou. Assim, formação educacional, ficha limpa e participação em atividades filantrópicas, por exemplo, são critérios que pontuam. A escolha é seletiva e privilegia certos tipos de cidadãos em detrimento de outros.
O plano de urbanização do governo central para o período de 2014-2020 não se dissocia do objetivo de remoção das restrições para a obtenção do hukou a fim de reduzir as desigualdades sociais. O novo sistema hukou será baseado no local de residência habitual e das atividades profissionais do indivíduo – e não mais no lugar de nascimento. A possibilidade de cidadania integral definida não pelo território de origem mas pelo local das ocupações habituais do cidadão dará nova dinâmica à sociedade chinesa ao se respeitar as escolhas do indivíduo. Mas este novo sistema será aplicado, primeiramente, nas vilas e pequenas cidades, e somente depois estendido para as cidades de médio e grande porte. O desafio é proporcional ao tamanho da China: é grande. A população migrante do país, hoje, é de 333 milhões – quase dois “Brasis”. Deste total, 260 milhões vivem nas cidades sem gozarem dos mesmos benefícios daqueles que possuem o hukou.[3] Em Xangai, por exemplo, até o ano passado, dos seus 24.15 milhões de habitantes, apenas 14.25 milhões possuíam o hukou, ou seja, quase 60% da população total da cidade. O que estes percentuais evidenciam? Que o hukou não limitou a mobilidade das pessoas e tem servido apenas para orientar a alocação dos custos com os benefícios sociais. A despeito das condições precárias de ser um “sem hukou”, os chineses estão preferindo partir para as grandes cidades em busca de oportunidades de trabalho e de realizar os seus sonhos.
Assistindo as imagens que projetavam o futuro das cidades de Beihai e Taicang, saí com a sensação de que a vida ali seria bem melhor de se viver. Depois me dei conta de que as imagens não estavam apenas exibindo as cidades do futuro, mas, também, o imaginário do que se tem chamado de “sonho chinês”. Esta migração e urbanização chinesa é motivada pela esperança de um futuro melhor para os cidadãos e para a nação. Se esta expectativa não se cumprir, a estabilidade social do país estará ameaçada. E a China correrá o risco de assistir ao que nós, brasileiros, assistimos em junho do ano passado nas ruas do Brasil: protestos da população por viverem em cidades onde os planos de futuro estão engarrafados, paralisados na espera do trânsito, inviabilizando o direito de ir e vir das pessoas em busca dos seus sonhos.
3 Comentários
Evandro, parabéns pelo post! Muito bem escrito e bastante atualizado.
Continue divulgando seu trabalho, pois é algo que ajuda muito a informar as pessoas sobre o que é a China.
Grande abraço
Liu
Obrigado, Alexandre! É um desafio fazer qualquer interpretação sobre o que se passa hoje na China. A minha é apenas uma dentre tantas outras possíveis. O que eu procuro fazer é explorar algum tema que está na ordem do dia do país (governo ou sociedade), trago um ponto de vista pessoal sobre o assunto tendo em conta o que se debate publicamente, procuro não cair na vala comum dos clichês da mídia ocidental (mas sem ser também um entusiasta acrítico de tudo o que se passa na China) e, por fim, procuro conectar com algo de interesse do nosso país. Fico contente que tenha gostado deste post e feito aqui o seu comentário. Um grande abraço. Evandro.
Ótimo texto, muito informativo. Abraços