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25 out 20

“China: o Nordeste que deu certo”: pouco mais de quatro décadas depois.

Notícias - Revista Nordeste

Publicado originalmente na edição especial da revista Nordeste [1]

“China: o Nordeste que deu certo” é o título do livro de autoria de Heloneida Studart publicado em 1978. Trata-se de um registro da viagem que a autora fez à China no ano seguinte ao fim da Revolução Cultural (1966-1976) e ao falecimento de Mao Zedong (1893-1976). Darcy Ribeiro, mesmo reconhecendo um certo deslocamento (“Não sei o que faço neste livro”), apresenta a obra e com ela se identifica não só por conhecer a autora, uma “cearense arretada”, mas pelas associações e lições ali trazidas. “Heloneida nos demonstra que até o Nordeste poderia, em prazos razoáveis, se tivéssemos juízo, construir com suas mãos e os barros mais atoas deste mundo, não mais riqueza para os ricos – como produziu sempre – mas uma modesta, porém geral prosperidade chinesa”, escreveu Darcy Ribeiro.

Na leitura das crônicas da autora pude identificar ocorrências que também constatei nos três anos em que morei em Shanghai, de 2013 a 2015, tais como a presença do chá no cotidiano, as “copiosas refeições chinesas” e suas deliciosas verduras, a ausência de saladas cruas às refeições, a aguardente Moutai “servida em cálices minúsculos”, as maratonas de visitações quando se está seguindo um roteiro como integrante de uma delegação a convite dos chineses (“os chineses não se preocupam muito com a palavra repouso”[2]), os exercícios matinais dos idosos, os casais que “nem sequer se dão as mãos” [3], etc. Contudo, apesar da permanência no tempo destes elementos do cotidiano, a realidade econômica e social da China atual tem outras particularidades que a diferem daquela testemunhada pela autora.

Se hoje, diante das modernas cidades chinesas, não se duvida da capacidade do país de se tornar uma sociedade próspera, ter esta percepção no final da década de 1970 e início da década de 1980, como teve Heloneida Studart, exigiria de qualquer observador uma capacidade de interpretar a realidade chinesa para além das condições materiais que, naquela época, eram bem precárias. E é o que a autora fez ao reconhecer o principal recurso da China: o seu povo. Em certo momento, observando a austeridade com que o chinês estava acostumado a entregar-se, escreveu: “Aqui, só vale o que as pessoas têm por dentro” [4]. Tal austeridade, que se traduzia em simplicidade na ação e no pensamento, poderia ser encarada como obstáculo para o desenvolvimento, mas foi o ponto de partida e o meio para uma longa caminhada de superação da extrema pobreza naquele país.

“Vejo um engenheiro diante de um computador. O que me espanta é o fato dele estar sentado num tamborete. Não de acrílico ou alguma matéria charmosa, modelado sob um design funcional. Trata-se de um tamborete de humilde madeira, rústico e lanhado, como tantos que se encontram no interior do Ceará, irmão de vários existentes na bodega do meu compadre Ricardo, no Iguape. Essa convivência do computador com o tamborete me espanta, principalmente, ao me lembrar que, em meu país, qualquer pequena agência bancária humilha com seus mármores e painéis murais os suntuosos palácios da Europa.

Fan (Iana) me olha severamente: ‘Aqui, não desperdiçamos nada’.

Eu teria oportunidade de verificar essa austeridade em todas as grandes – e pequenas – cidades da China que visitei. Não é apenas porque eles são pobres. Já vi, em casebres brasileiros, liquidificadores cromados para serem pagos em 50 prestações, fazendo o orgulho de famílias que não vacinam suas crianças.” [5]

As semelhanças entre a China que a autora conheceu e o Nordeste brasileiro daquele tempo deviam-se à proximidade de seus estágios de desenvolvimento econômico e social, das condições de vida marcada pela pobreza, do singelo trato das pessoas, da consideração com a sabedoria popular.[6]