30 abr 13

Democracia Chinesa

Blog.Democracia

O Partido Comunista Chinês (PCCh) é o único partido da China. Correto? Errado. A resposta surpreende muitos de nós que desconhecemos o sistema e os processos políticos internos na China. Além do PCCh, há mais oito partidos considerados democráticos. São eles: Comitê Revolucionário do Kuomintang Chinês, Liga Democrática da China, Associação da Construção Nacional Democrática Chinesa, Associação Chinesa para a Promoção da Democracia, Partido Democrático dos Camponeses e Trabalhadores Chineses, Partido Zhi Gong da China, Sociedade Jiu San e Liga do Governo Democrático de Taiwan. Somados, estes partidos contam com mais de 850.000 filiados. Parece muito, mas não é. Este número corresponde a apenas 1% do número de membros do PCCh.

O que estes oito partidos têm em comum?

Além de serem considerados “não-comunistas”, todos eles surgiram antes da fundação da República Popular da China em 1949, lutaram juntos contra os japoneses durante a Segunda Guerra Mundial e contra Chiang Kai-shek e suas forças nacionalistas. A vitória de Mao Zedong radicalizou o discurso ideológico comunista e inibiu o desenvolvimento dos partidos democráticos que só retomaram o espaço perdido na vida política do país a partir do ano de 1978 com o início das reformas e a política de abertura promovidas por Deng Xiaoping. Mas mesmo atualmente estes grupos políticos têm uma atuação institucional limitada. Afinal, na China, quem governa é o PCCh. Aos demais partidos é dada a possibilidade de participar do governo, mas não de disputá-lo.

O sistema político chinês é, portanto, baseado na cooperação multipartidária sob a gestão e a liderança do PCCh com o objetivo de tornar o processo de tomada de decisão “mais científico e democrático”. Aparentemente, a ideia de democracia associa-se mais à possibilidade do exercício do dissenso que se dá em espaços institucionalizados e supervisionados pelo PCCh. A Conferência Consultiva Política do Povo Chinês (CCPPC) – que reúne mais de 2.000 membros – é a ocasião por meio da qual os membros de todos os partidos manifestam-se e apresentam propostas de medidas para solucionar problemas sociais. Por meio desta Conferência, o governo chinês recebe as críticas e percebe as insatisfações sociais. Uma espécie de “democracia consultiva”. Com isso, injeta e explicita dentro do próprio sistema, ainda que de maneira controlada e modesta, a contradição do processo político e previne-se contra os riscos da estagnação do governo que poria em risco a legitimidade do próprio PCCh.

Mas não se pode desprezar, também, o papel de “consciência crítica”, ainda que moderada, que os partidos democráticos podem exercer diante do PCCh. O Presidente da China, Xi Jinping, parece disposto a estimular esta atuação naqueles partidos. Ele tem pedido mais tolerância ao PCCh às críticas elaboradas pelos membros dos demais partidos e, por sua vez, encorajado estes últimos a serem ainda mais críticos. “As pessoas dos partidos não-comunistas deveriam ter a coragem de dizer a verdade, falar palavras que são chocantes para os ouvidos e sinceramente refletir as aspirações públicas”. Estariam eles dispostos a atender ao chamado do Xi Jinping?

Chen Changzhi, presidente da Associação da Construção Nacional Democrática Chinesa, suaviza o tom do exercício da prerrogativa do dissenso: “os partidos democráticos devem falar a verdade, mas a crítica deve ser realista e racional”. Wang Donglin, da Liga Democrática da China, segue na mesma direção admitindo, contudo, que os membros dos partidos não-comunistas estão se atrevendo a falar cada vez mais: “você tem de expressar seu ponto de vista racionalmente. Se você quer dizer o que quiser, você diz isso na internet”. Curiosa declaração. Começo a suspeitar que a ideia de tomada de decisão “mais científica” pode estar relacionada à de “crítica racional” que, por sua vez, sugere a ideia de comedimento na exposição dos seus pontos de vista. Uma declaração de Zhu Shihai, professor do Instituto Central do Socialismo, corroboraria esta minha opinião. Para ele, se os partidos democráticos “expressarem alguma crítica acentuada em público, ela seria vista como ‘rude’ ou ‘grosseira’”. Ou seja, tem que fazer a crítica sem ser tão crítico. Algo assim. De todo modo, o que está em jogo não é a possibilidade da crítica, mas a amplitude e o modo de fazê-la.

Um outro aspecto importante a ressaltar é que muitos membros dos partidos democráticos integram ou já integraram o governo comunista. As estatísticas apontam que aproximadamente 32.000 membros destes partidos trabalharam nos vários níveis do executivo, legislativo e judiciário. É o caso do atual Ministro da Saúde, Chen Zhu, que é também presidente do Partido Democrático dos Camponeses e Trabalhadores Chineses. (Este fato, por si só, não deveria nos escandalizar. Afinal, no Brasil é comum partidos de oposição tornarem-se governistas – alguns, inclusive, fazem isto em governos sucessivos e de orientações ideológicas bem distintas). Não é o caso de se dizer que os partidos democráticos chineses são “oposição” ao PCCh. Membros daqueles partidos podem até se filiar ao PCCh, deixando para trás a filiação anterior – mas o contrário não acontece. A razão? Sair de um partido democrático para ingressar no PCCh é visto como uma “ascensão” na política chinesa. O caminho inverso é percebido como um “rebaixamento”: o político passa a jogar na segunda divisão.

Esta participação no governo favorece o relativo consenso de que este sistema de cooperação multipartidária desprovido de eleições livres é eficaz e adequado para se manter a estabilidade e a ordem social em um país superpopuloso. Muitos consideram que o modelo ocidental de democracia produziria a desintegração nacional ao estimular a rivalidade entre os partidos e o surgimento dos “senhores da guerra” (expressão que remete ao período que antecedeu ao nascimento da República da China quando chefes militares chineses dominavam algumas regiões do país.). Ademais, atribui-se ao sistema político chinês a chave do sucesso econômico da China.

Neste esforço de compreender as instituições jurídicas e políticas chinesas, as noções de “partido”, de “governo” e de “democracia” ganham outros contornos quando as interpretamos com o dicionário da política chinesa. É preciso querer entender a China sob o ponto de vista dos chineses. Com isso, não se está a defender necessariamente o modelo chinês, mas o entendimento do modelo político da China. O presidente do Comitê Revolucionário do Kuomintang Chinês, Wan E’xiang, ao defender a legitimidade do sistema político chinês, fez uso de um velho ditado: “só os pés sabem se os sapatos são confortáveis ou não”. Um recado aos países ocidentais que insistem em criticar narcisicamente o modelo chinês. O ditado pode ser retraduzido pela popular expressão “cada um no seu quadrado”. Para um país cujas palavras devem caber num quadrado imaginário, independentemente do número de traços por que é constituído, o dito popular torna-se muito apropriado e explicativo.

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10 Comentários

  • Samuel Georgius says:

    Bom, não tenho nada a dizer sobre a depuração precisa das informações e o sabor de poder ler sob a ótica do arroz com feijão a cultura chinesa, obrigado por isso, mestre!
    Me interessa saber em particular, pois no texto é dito a opinião do premiê chinês sobre a participação dos partidos pequenos: É verdade que o PCCh, na cabeça de seus líderes regionais, se desloca com autonomia em relação ao governo central e entre eles próprios, e há publicidade na imprensa de divergência de opiniões entre possíveis membros importantes do partido sobre determinadas políticas?

    • Oi Samuel, obrigado por seu comentário. Sobre a sua questão, há um senso de hierarquia muito forte dentro do PCCh. Se algum membro do partido tiver pretensões de galgar espaços dentro do governo ou do próprio PCCh deverá estar atento às decisões tomadas na instância superior. Nada muito diferente do que ocorre em muitos partidos no Brasil que são controlados por um grupo pequeno de poderosos. A imprensa chinesa (pelos menos os jornais que circulam em inglês – e tenho lido constantemente três deles: China Daily, Global Times e Shanghai Daily) sempre publica artigos de opinião que, muitas vezes, são bem críticos do governo, mas à moda chinesa. Ou seja, dão o recado sem serem vulgar. O que mais me chama a atenção é que a presença dos professores das universidades no debate público é muito evidente. A Universidade, aqui, está muito bem inserida na política. Isto pode ter sido decorrência do controle ideológico que era feito no passado. Mas que está mudando. Hoje, o PCCh é muito mais aberto à participação de intelectuais na política – o que não ocorria no período de Mao Zedong. Basta ver o currículos das duas principais lideranças do país. Tratei disto no post intitulado “O Direito em alta na China”. Forte abraço.

  • Tiago van Tol says:

    Excelente artigo, acredito também ser relevante a economia causada pela ausência de eleições diretas e campanhas políticas…

    • Prezado Tiago, obrigado por sua visita e comentário. Eu tenho procurado, antes de tudo, levar ao conhecimento dos brasileiros a perspectiva chinesa sobre vários temas. Claro que esta tentativa será sempre “prejudicada” pelo inevitável olhar de um estrangeiro. Pessoalmente, e pensando no Brasil, os custos com a eleição serão sempre bem menores do que os custos que teríamos com uma democracia debilitada. Aqui na China tenho observado, ao menos na universidade, abertura para o debate sobre democracia. Mas é um país que tem a sua história, as suas características e seu processo histórico próprio. Não saberemos dizer se o Partido Comunista Chinês conseguirá legitimar por muito tempo o modelo político atual. Acho que em algum momento as liberdades econômicas poderão fazer pressão para que haja maior liberdade política. O PCCh procurará ter um controle sobre este processo de abertura. Resta saber se conseguirá fazer isto sem precisar lançar mão de represálias contra aqueles que querem que as mudanças sejam mais rápidas.

  • Ernesto Sastre says:

    Excelente articulo y gracias por tan precisa información.-

  • Caio de Moraes Loboc says:

    Mas se lá é democracia, pq não tem acesso a google e Facebook e a outros sites por exemplo? Pois se for uma democracia deve haver total acesso a informações, claro que em qualquer lugar do mundo há as suas restrições, mas lá é muito maior. Eu sempre gosto de me comunicar com outras pessoas do mundo através do Facebook, até com pessoas do Afeganistão tenho contato, mas com o chinês a China nao tenho nenhum contato por causa dessa barreira

    • Oi Caio, este é um tema da máxima importância. A China bloqueia alguns sites por razões estratégicas que merecem ser compreendidas numa perspectiva mais ampla. Antes de tudo, é preciso entender que a chamada “internet livre” é uma ilusão. Pois cada vez mais ela é objeto de controle pelas grandes empresas tais como o facebook e o google. A invasão da privacidade e o uso desta internet “livre” para outros fins evidencia que as democracias ocidentais são tão vigilantes quanto a China, e talvez até pior. Além disso, o modelo de governança da China deve ser compreendido desde uma perspectiva histórica. Os chineses fazem sua história de dentro deles mesmos e enfrentando intervenções estrangeiras que sempre ocorreram desde o século XIX. Entender a China com abertura pode ser um caminho interessante de compreender também os motivos pelos quais as democracias ocidentais estão em crise, perdem legitimidade e se tornam autoritárias. E há formas diversas de autoritarismo. Abraço. Evandro Carvalho.

  • Karl Marx says:

    A Democracia Chinesa no estilo Chinês.

  • Gabriel Pablo says:

    Muito incrível, gostei da explicação. Comecei a estudar mandarim, pois admiro a cultura/história de lá. Obrigado pelas informações

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