11 jul 15

A China e os seus dois Ocidentes. Qual é o nosso?

Vista.Chinesa

Um estrangeiro recém chegado na China é um potencial candidato a ser um veiculador de clichês. Muitos que aqui estão querem transmitir aos seus compatriotas do país de origem uma visão sobre a China que superdimensiona aquilo que é tido como caracteristicamente peculiar na cultura chinesa. Aí todos os tipos de clichês se afloram: a China confucionista, do chinês mal educado, da culinária peculiar etc. É mais ou menos como aquele estrangeiro que está no Brasil e que, no intuito de querer “conhecer” o Brasil, aquele país tropical abençoado por Deus, procura por araras, mulatas, um barquinho e um violão, além de uma manhã de carnaval que se estenderia pelo dia inteiro. O resultado disto é que se vive um país que não existe a não ser na imaginação dos inocentes em busca de um mundo perdido em algum lugar da sua mente.

Pôr a lupa sobre aquilo que os nossos olhos já veem de modo condicionado pelas informações que circulam recheadas de estereótipos só nos impede de ver a realidade como ela é. O melhor a fazer para se prevenir das imagens distorcidas por um preconceito ou romantismo exacerbado da realidade é, simplesmente, abandonar as lentes que deturpam os sentidos e enfronhar-se no cotidiano do país para ver, com os próprios olhos, como ele é.

Estou morando na China há dois anos. Parece muito, mas não é. O tempo de aprendizagem, adaptação e gosto pela China não é, para nós “ocidentais”, o tempo que levamos para aprender a se adaptar e a gostar de uma Espanha, uma França, uma Itália, por exemplo. Certa vez, o diplomata brasileiro Durval Carvalho compartilhou comigo a seguinte reflexão: “Quando nós brasileiros vamos morar na Europa, 80% do software sobre a cultura europeia já está instalado em nós. Mas quando se chega na China, o download que fazemos da cultura e do idioma chinês começa do zero e progride lentamente”. Ele tem razão. E faço um pequeno acréscimo: o download é daqueles que avança e recua com frequência a depender do grau de conexão que se estabelece com a China, ou seja, com a sua língua, com os chineses, com a sua cultura. Não basta morar aqui, é preciso viver e querer viver a China. E recomendo não vir para cá munido apenas das informações que a mídia ocidental veicula sobre a China.

Aliás, este é um assunto que merece uma reflexão. Na China, a palavra “Ocidente” pode ser dita de duas formas: “Ōuměi” (欧美) e “Xīfāng” (西方). A primeira expressão decorre da junção dos primeiros caracteres usados para designar, respectivamente, “Europa” (欧洲 , lê-se “Ouzhou”) e “América do Norte” (北美, lê-se “Bei Mei”). De um modo geral, a tradução direta do 欧美 faz referência especial à Europa Ocidental e aos EUA e Canadá. Já a palavra “Xīfāng” (西方) tem uma conotação mais ideológica para os chineses pois se refere aos países capitalistas ocidentais desenvolvidos, incluindo a União Europeia (especialmente os membros originais do Oeste, Norte e Sul da Europa), Estados Unidos, Canadá e, inclusive, Austrália, Nova Zelândia e Japão. Este último, embora seja asiático, é parte do 西方, mas não é um país do 欧美. Vê-se que a noção de “Ocidente” na China de hoje não é ancorada na geografia, mas na economia e na política. Há na palavra “Xīfāng” até um certo sentido de países que se contrapõem à China. E talvez isto explique o fato de os chineses não incluírem a capitalista Coreia do Sul naquele grupo. Sendo assim, a Coreia do Sul é como um país oriental.

E nós? Os países latino-americanos não estão incluídos em nenhuma daquelas categorias. Eles são referidos como Lading Meizhou (拉丁美洲), isto é, América Latina. Logo, para os chineses não somos ocidentais. Estranhou? Achou ruim? Eu estranhei, mas não achei ruim. Ao contrário, adorei descobrir esta segmentação da realidade do mundo na língua chinesa.

Ora, se olharmos o mapa das economias e como elas se agrupam, vemos claramente que não somos ocidentais, no sentido dado pelos chineses – mesmo sendo o Brasil uma das dez maiores economias do mundo. E, ao contrário do que possa parecer, esta percepção chinesa sobre a existência de dois Ocidentes pode ser uma vantagem para nós na relação com a China. Para isto, é preciso olhar a história.

No final do século XIX, países ocidentais invadiram a China em busca de mão-de-obra barata, recursos naturais e um comércio altamente lucrativo que obrigava os chineses a comprarem ópio. Quando o imperador Xiánfeng (咸丰) reagiu a esta vergonhosa relação comercial que lhe foi imposta, a China sofreu mais ataques. Hoje a China tem boa relação com o Ocidente desenvolvido e o admira. Nisto somos parecidos pois também tivemos o nosso território invadido e saqueado pelos europeus e hoje os admiramos. Mais do que isto: consideramo-nos como parte do “Ocidente” e, às vezes, defendemos os seus valores como se fôssemos nós os seus pais fundadores.

Além disso, entre nós e a China não há um passado de guerras, invasões e exploração desbragada que possa colocar sombras na relação bilateral. O diálogo Brasil-China é livre destes aguilhões da história que ainda exercem seus efeitos quando lidamos com europeus ou estadunidenses de modo subserviente às suas ideias e pretensões. Neste sentido, na relação com os chineses, somos mais iguais do que na relação com o Ocidente. E assim talvez possamos abrir a nossa percepção sobre nós mesmos a ponto de deixarmos de ser menos “ocidente”, mais “latino-americanos” e, também, mais próximos da China do Oriente.

Obs.: texto publicado na edição de lançamento da revista “China Hoje”- uma publicação da China International Publishing Group em parceria com a Editora Segmento e a Go East Brasil. Na foto do post, a “vista chinesa” no Rio de Janeiro.

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3 Comentários

  • Ge says:

    Muito bom seu blog. Descobri pelo blog o Cafezinho. Por isso temos que aprender mandarim rs

    • Muito obrigado! Sim, é importante aprendermos mandarim a, mais do que isto, estarmos abertos a aprendermos mais sobre a China, sua sociedade, economia e cultura. Abraço! Evandro Menezes de Carvalho.

  • Filipe Rodrigues says:

    Muito obrigado também! Descobri agora o seu blog, onde já encontrei muito conhecimento e esclarecimento de dúvidas sobre a ainda tão misteriosa China para mim. Obrigado por seu trabalho, e pelo esforço de nos contar o que vivencia aí. Quero aprender mandarim, agora ainda mais. Abraços, Filipe Rodrigues.

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