21 mar 15

China e Japão: o futuro do mundo em suas mãos

China-Japão

Para um estudioso ou observador interessado nas relações internacionais, viver na China é uma experiência que desafia o nosso modo de ver a realidade internacional porque muda, inevitavelmente, o nosso campo de visão. Desde o Brasil, a Ásia torna-se uma realidade remota não só pela distância geográfica, mas também por influência do nosso contexto geopolítico, das notícias internacionais selecionadas e divulgadas pela mídia nativa e do ambiente acadêmico demasiadamente orientado pela agenda euro-estadunidense. O pouco que sabemos sobre a Ásia é, assim, influenciada pelas ideias que navegam no eixo norte-sul do Atlântico.

É natural que enquadremos o nosso olhar na direção dos assuntos que estão mais próximos ao “nosso mundo”. O “zoom” intelectual de longo alcance capaz de olhar, no detalhe, o que se passa na paisagem asiática é um exercício ao qual poucos se dedicam. Em regra, falta-nos interesse e, também, uma boa “tecnologia cultural” que nos permita enxergar o lado oriental do mundo sem as lentes dos estereótipos, ideologias e dogmas do Ocidente – e que são muitos.

Somente quando se vive a Ásia é que o campo de visão do ocidental se alarga. Somos expostos a diferentes conceitos, expressões, hábitos, problemas e modos de pensar e agir. É preciso sensibilidade para perceber diferenças sutis mas fundamentais. Sem isso, tudo o que se possa dizer sobre a Ásia é de uma tolice caricata.

Viver no Oriente é, também, expor-se mais às questões de países que não aparecem no radar da política e da mídia brasileira. O noticiário internacional é mais diversificado aqui na China porque não se limita ao que interessa à Europa, aos EUA e ao que se passa no Oriente Médio. Há muitas notícias sobre diversos países da Ásia e da África. Obviamente estes são continentes onde a presença chinesa só aumenta.

O fato é que o campo de visão é uma escolha ancorada nas circunstâncias concretas de quem olha. Mas o Brasil não deveria, também, estar mais interessado e atento ao lado oriental do mundo? A pretensão de ser membro permanente do Conselho de Segurança da ONU e o fato da China, por exemplo, ser o seu primeiro parceiro comercial, não bastaria para perceber a importância de uma visão mais alargada dos fatos do mundo?

Até aqui sabemos muito sobre os EUA e a Europa, e quase nada da Ásia e do continente africano (e mesmo da América Latina sabemos muito pouco). Uma deficiência cognitiva como resquício de uma colonização duradoura. Alguém dirá: os rumos do mundo depende mais dos movimentos dados pelos grandes países e, por isto, interessamo-nos tanto em saber o que se passa nos EUA e na Europa. Se é assim, o que dizer da China e do Japão? Aliás, suspeito que o futuro da humanidade está dependendo, mais do que podemos imaginar, do bom relacionamento entre estas duas grandes nações asiáticas. Explico.

Desde que cheguei à China chamou-me a atenção o fato, bastante evidente, de que a percepção que os chineses tem dos japoneses não é muito positiva. Este é um fato que se revela quando conversamos com os chineses sobre a relação de seu país com o Japão. Eu suspeitava que a recíproca pudesse ser verdadeira. A suspeita se confirmou. Uma pesquisa recente, divulgada e patrocinada pelo China Daily e o think tank japonês Genron NPO, revelou que 90% dos japoneses têm uma má impressão da China e 80% dos chineses têm uma má impressão do Japão. O cenário é agravado pelo fato de 66.7% dos japoneses e 57.3% dos chineses acreditarem que os laços entre os dois países se deterioraram ainda mais.[1] O resultado da pesquisa impressiona se considerarmos que os fluxos de pessoas entre os dois países é bastante significativo. No primeiro semestre de 2014, o número de viajantes da China continental para o Japão ultrapassou a marca de um milhão de pessoas, segundo dados da Organização Nacional de Turismo do Japão.

Assim, seria simplificador demais dizer que a má impressão dos chineses em relação aos japoneses só acontece porque há uma máquina de propaganda do Partido Comunista Chinês a promover um tipo de sentimento anti-nipônico. Esta foi uma das explicações que ouvi de um … ocidental – uma explicação bastante preguiçosa da realidade chinesa. Para se saber o porquê da relação bilateral China-Japão ser repleta de receios e ressentimentos, é preciso olhar o passado, mais propriamente o final da última dinastia chinesa, a Qing, quando houve a guerra Sino-Japonesa de 1894-1895 e as persistentes invasões japonesas nas primeiras décadas do Século XX aproveitando-se tanto do fato de os europeus estarem bastante ocupados com a I Guerra Mundial quanto da displicência do Chiang Kai-shek, então líder dos Nacionalistas do Guomindang, que tinha como prioridade o extermínio dos seus compatriotas comunistas chineses. A traição britânica e francesa revelada no Tratado de Paz de Versalhes que pôs fim à Primeira Guerra e que concedeu ao Japão, em razão de um acordo secreto, território ocupado pelos alemães na China, bem como o Massacre de Nanjing (1937) perpetrado pelos japoneses, parecem ter deixado cicatrizes profundas e indeléveis na memória da população chinesa.

As versões oficiais da história, seja do lado chinês, seja do lado japonês, dificilmente serão um retrato fiel da história real, aquela que é vítima dos jogos de poder. Já se dizia que os fatos históricos são interpretações de uma realidade vivida e escrita sob a ótica do vencedor. É preciso, portanto, cautela e uma boa arqueologia dos fatos capaz de nos esclarecer aspectos ocultados pela narrativa oficial. Um trabalho para verdadeiros historiadores. Aliás, estes fazem muita falta nos dias de hoje onde o projeto de “esquecimento” dos fatos pretéritos torna-se, em muitos países, um projeto de Estado e/ou de sua própria elite.

China e Japão estão escarafunchando a história e duelando na diplomacia. O clima entre eles não é dos melhores. Três fatos recentes contribuíram para complicar ainda mais a difícil relação bilateral. O epicentro da disputa são as ilhas Diaoyu ou Senkaku, conforme se dê a elas o nome chinês ou japonês, respectivamente. O Japão teria nacionalizado as ilhas sob protesto da China que, em resposta, estabeleceu uma zona de defesa aérea no Mar da China Oriental abrangendo o território das ilhas e determinando que qualquer aeronave que ali ingressar deverá obedecer as regras impostas pelo Ministério da Defesa chinês. A China alega que Tokyo teria adotado medida semelhante em 1969 quando criou uma zona de identificação aérea que, em 1972, teria sido expandida para incluir as ilhas Diaoyu. Estas ilhas são importantes porque estão próximas de rotas de navegação e de potenciais reservas de petróleo e gás.

O segundo fato complicador das relações bilaterais foi a visita, em 2013, do Primeiro Ministro japonês Shinzo Abe ao Santuário Yasukuni. Este santuário contém símbolos do nacionalismo japonês, recordações do seu passado militarista e a controversa inclusão de 14 criminosos de guerra (condenados pelos países Aliados) no rol dos nomes dos soldados mortos na Segunda Guerra Mundial. Há quem afirme que esta visita de Abe ao Santuário foi uma tática política visando obter mais apoio doméstico ao seu governo.

De todo modo, a China se viu contrariada e sua reação deu-se no ano seguinte. O Congresso Nacional do Povo da China, seu poder legislativo máximo, aprovou, em 27 de fevereiro de 2014, a criação de dois dias nacionais em memória às atrocidades de guerra cometidas pelo Japão na China. São eles: o dia “3 de setembro”, data seguinte à rendição oficial do Japão em 1945, consagrando a vitória da China na Guerra de Resistência contra a agressão japonesa (1937-1945) na Segunda Guerra Mundial; e o dia “13 de dezembro” dedicado à memória das vítimas do Massacre de Nanjing, em 1937, quando tropas japonesas teriam matado mais de 300.000 chineses, entre civis e soldados, em mais de 40 dias.

Diferentemente do que fizera em 2013, no ano de 2014 o Primeiro-Ministro Shinzo Abe não visitou pessoalmente o Santuário, mas ofertou uma masakaki, árvore considerada sagrada. Esta oferenda foi levada ao local, no dia 17 de outubro, por 110 legisladores japoneses.

Desde 1994 o governo da província de Jiangsu realiza cerimônia em memória às vítimas do Massacre de Nanjing, capital daquela província. Mas a decisão de estabelecer uma data nacional por parte do Congresso do Povo da China atribui àquela data e à cerimônia uma dimensão política que não tinha antes. A cerimônia deixou de ser um evento local para se tornar um acontecimento nacional. No dia 13 de dezembro de 2014, a cerimônia foi televisionada e ganhou ampla cobertura nacional (links abaixo). O discurso do Presidente Xi Jinping, de precisão cirúrgica, mirou o ponto de “infecção” das relações bilaterais. Xi declarou que o povo chinês não deve guardar rancor contra o Japão, já que “a responsabilidade pela guerra estava com alguns militaristas, e não com as pessoas”.[2] Deixa uma porta aberta para um entendimento mútuo mais amplo. Se irá surtir efeito ou não, ainda é cedo para saber. Até o momento, as pesquisas que mencionei dizem que há um longo caminho a percorrer para que chineses e japoneses construam uma relação de confiança mútua e sem ressentimentos.

Interessante observar que a crítica contra esta data nacional partiu de dentro da China. Tal como relatou o jornal chinês Global Times, “alguns alegaram que as baixas totais na guerra civil chinesa nos três anos da grande fome da China (1959-61) e na Revolução Cultural (1966-76), juntas, são muito maiores do que aquelas causadas pela agressão japonesa.” A reação do editorial do Global Times a esta crítica foi dura e, no meu ponto de vista, desvirtou o foco da discussão. O jornal utilizou-se da crítica para fazer reparos ao livre exercício da liberdade de expressão. “A velha sociedade em que apenas uma voz poderia ser pronunciada há muito tempo passou, e a diversidade [de opiniões] é admirada por esta nova sociedade. Mas a diversidade não endossa ataques incondicionais contra os valores fundamentais da sociedade chinesa. A extensão da liberdade de expressão está à espera de ser demarcada.”[3] O problema deste debate está exatamente na definição dos limites desta demarcação. Mas sem entrar nesta discussão, o fato é que os conflitos com o Japão e os conflitos internos da China possuem sentidos históricos distintos. Enquanto estes últimos envolvem disputas pelo poder entre os próprios chineses, aquele diz respeito a uma questão de soberania da China ante uma ameaça externa.

Por fim, o terceiro fato complicador na relação China-Japão envolve uma questão de interpretação jurídica com um potencial destrutivo difícil de avaliar. Em julho de 2014 o gabinete do Abe adotou uma resolução que reinterpreta o artigo 9o da Constituição japonesa de modo a permitir que as Forças de autodefesa exercitem, também, o direito de autodefesa “coletiva”. Na prática, o Japão estaria autorizado a usar suas forças armadas para proteger seus aliados – prerrogativa que lhe é vedada desde a sua derrota na Segunda Guerra Mundial.

O artigo 9o em questão estipula o seguinte: “O povo japonês renuncia para sempre a guerra como um direito soberano da nação e a ameaça ou ao uso da força como meio de resolver disputas internacionais”. E, para cumprir este objetivo, “forças terrestres, marítimas e aéreas, bem como outro potencial de guerra, nunca será mantido. O direito de beligerância do estado não será reconhecido”. Discute-se a força normativa de uma resolução oriunda do Gabinete do Primeiro-Ministro ante um dispositivo constitucional. O artigo 96 da Constituição japonesa, que trata dos procedimentos para emenda à constituição, estipula ser preciso maioria de 2/3 em ambas as casas legislativas, seguido de um referendo, para que seja aprovada uma mudança na norma jurídica constitucional. Abe quer uma simples maioria em ambas as casas e sem referendo.[4]

Abe argumenta que o Japão deve ter uma Constituição estabelecida pelos próprios japoneses para substituir a Constituição vigente, imposta pelos Aliados após a derrota do Japão na Segunda Guerra.[5] Ele menciona os novos desafios de segurança para o país e a região asiática, nomeadamente a disputa com a China no Mar da China Oriental e a ameaça dos mísseis norte-coeranos. Mas para alterar a Constituição, o Japão terá de romper com a ordem internacional concebida no Pós-guerra.

Para alguns analistas, a reinterpretação do artigo 9o permite ao Japão proteger seus aliados e teria sido bem vinda por Washington. Para o Global Times, “os EUA tem como objetivo conter a China fazendo uso do Japão ao dar espaço para a ambição estratégica de Abe”.[6] Para Yang Bojiang, especialista em estudos sobre o Japão da Chinese Academy of Social Sciences, a nova interpretação marca “um ponto de viragem na história do pós-guerra na política de segurança do Japão”. Segundo ele, reativar as habilidades de auto-defesa do Japão trará mais complexidade e incertezas para a região da Ásia. Em outras palavras, estimulará uma escalada armamentista.

Os EUA já declararam que o pacto de segurança entre eles e o Japão se aplica em relação a questão das ilhas Diaoyu/Senkaku. Não é demais lembrar que as ilhas ocupam posição estratégica em meio à crescente concorrência entre EUA e China pela primazia da região da Ásia-Pacífico. No entanto, as profundas relações econômicas que Washington mantém com Beijing jogam para um futuro distante um conflito armado entre chineses e japoneses.[7] A percepção geral é que a China não está na mesma situação em que esteve em 1894-95 ou nos anos 1930. Hoje, a China já não é tão fraca como era há 120 anos, quando foi intimidada pelas potências imperialistas e teve de oferecer concessões e implorar pela paz através do pagamento de compensação ou cessão de território.

Neste ano, comemora-se os 70 anos do fim da Segunda Guerra Mundial. É preciso ser muito ingênuo para acreditar que os movimentos das potências mundiais no tabuleiro das relações internacionais são feitos na direção desejada pela Carta da ONU. China e Japão deveriam aproveitar esta oportunidade para tomar medidas concretas que promovessem a aproximação de seus povos de modo a reduzir as desconfianças e ressentimentos. Pode ser um propósito típico de sonhadores. Mas é melhor sonhar na paz do que ter que viver um pesadelo de um conflito internacional.

* * *

Repercussão na mídia sobre o dia nacional em memória das vítimas do massacre de Nanjing, em 13 de dezembro de 2014.

Reuters: https://www.youtube.com/watch?v=OWsJoMUPdkM

CCTV: https://www.youtube.com/watch?v=ezqybsyquSs

Al Jazeera: https://www.youtube.com/watch?v=-sg-LZSwrGY


[1] “Survey finds pessimism in ties with Japan”. China Daily. 10 de setembro de 2014, Capa. http://www.chinadaily.com.cn/2014-09/10/content_18571059.htm

[2] Global Times. “Commemoration not display of anti-Japan sentiment: analyst”. 15 de dezembro de 2014, p. 2.

[3] “Disrespecting memorial days crosses a line”. Global Times. Editorial. 15 de dezembro de 2014. P. 14.

[4] “Abe takes license with interpretation of Constitution”. China Daily. 02 de julho de 2014, p. 3.

[5] “Abe’s quixotic quest for constitutional change”. China Daily de 4/3/14, página 8.

[6] “Japanese fear Abe more than China: expert”. Global Times, 2 de julho de 2014, p.2.

[7] “Maintaining world peace”, Liu Qiang. China Daily. 2 de julho de 2014, p. 8.

2 Comentários

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

*